No dia 5 Março fui convidada para participar num debate sobre a criação de um novo núcleo LGBTI+ no IST (núcleo LGBTI do Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa), o QueerIST. Entre vários temas, debatemos o conceito de identidade e comunidade, a criação de espaços seguros e visibilidade – a par do actual panorama na universidade. Antes de mais devo parabenizar a iniciativa. O nível de violência sofrida por pessoas com identidades e sexualidades não normativas ainda justifica a criação destes grupos.
A discussão foi longa e divergiu em opiniões bastante distintas sobre os vários tópicos abordados. Muitas pessoas entendiam a importância da afirmação identitária, da criação de comunidade e espaços seguros e reconheciam a importância da visibilidade conseguida através da cultura. Por outro lado, muitas pessoas recusavam a existência de discriminação, a importância das identidades e também dos espaços seguros. Não se reconhecendo numa cultura que busca a sua libertação social e política. Sem dúvida, este é um sintoma da normalização da violência. A discriminação é enraizada nas nossas acções do dia a dia e, com isso, parece apenas normal que exista – sem manifestação de repulsa. É ainda um caminho longo que teremos de percorrer para haver consciência do impacto das micro agressões diárias que a população LGBTI+ sofre. Mais, ter consciência que os espaços em cidades como Lisboa são uma bolha isolada do resto do país e, como tal, a violência exercida noutros locais é bastante maior.
Uma das dificuldades iniciais sentidas no debate foi relativa ao uso do insulto e/ou sua apropriação. O que é insultuoso ou o que é provocatório ou, até mesmo, o que é brincadeira ou apropriação? Quando se fala de comunidades marginalizadas a linha que separa o significado destas palavras é bastante ténue. Para muitas pessoas a apropriação do insulto serve como forma de segurança pessoal e de minimizar os efeitos que este provoca no seu dia a dia, para outras pessoas o uso do insulto deve ser normalizado para ser naturalizado na sociedade, cabendo a cada pessoa a responsabilidade de interpretar o significado que se dá ao uso das palavras. Esta interpretação do uso do insulto é problemática na medida em que ignora que a generalidade das pessoas de identidades e sexualidades não normativas já conhecem e já estão habituadas ao insulto desde a sua tenra infância. Descobrir-se no insulto implica uma consciência menos saudável da sua natureza enquanto pessoa – um pensamento claro de “eu sou o erro”. Por outro lado, também desresponsabiliza a pessoa que o usa, concedendo a essa pessoa uma protecção naturalizada para a violência que exerce no próximo. Os processos de apropriação do insulto são complexos e há palavras que ainda hoje continuam a ter um significado bastante pejorativo sendo difícil a sua apropriação em meios comuns como o espaço público que nos cerca no quotidiano.
Neste sentido, não se pode falar em insulto sem falar em isolamento e, em consequência, não se pode deixar de falar da criação de espaços seguros. Como definimos este tipo de espaços? Um espaço seguro é todo e qualquer espaço, físico ou não, que promove um ambiente acolhedor e livre de julgamento para as pessoas que o compartilham, é também um espaço livre de policiamento e onde cada pessoa é empoderada em todos os eixos da sua identidade. Normalmente, e por uma questão de luta, os espaços seguros normalmente compartilham opressões sistémicas comuns. Por exemplo: espaços para mulheres, espaços para pessoas negras, espaços para pessoas LGBTI, espaços para pessoas trans/não-binárias, entre outros… Estes espaços surgem como forma de garantir às pessoas que têm um local onde podem residir livremente na sua identidade, onde as opressões são reconhecidas como um problema social e onde podem trabalhar o cuidado mútuo. A existência de espaços seguros está directamente ligada à ocupação do espaço público. Identidades (aqui podemos ter uma visão interseccional e incluir os vários eixos identitários) não normativas, ou não hegemónicas, não têm um acesso digno e, suficiente e igualitário ao espaço público. Infelizmente,o processo de conquista deste espaço é lento e normalmente passa pela homogeneização dos quadros identitários – a forma correcta de ser gay, lésbica, bi, trans, intersexo, … Portanto, esta conquista está sempre associada a espaços de empoderamento e emancipação dos indivíduos da comunidade e isso só é possível garantindo locais livres e críticos.
Entender esta necessidade é entender que a violência é normalizada. É entender que o mundo está construído sobre uma moral sobre o que é correcto e o que é errado, o que tem poder e o que não tem poder. É neste ponto que vemos as nossas identidades também transformadas em luta política, em afirmação e ocupação. É importante também perceber que a violência não provem só do insulto directo, vem do sistema legal, do sistema de saúde, do sistema educativo, da justiça, do próprio Estado. É entender que as nossas limitações podem não ser a de outros e, como tal, a minha não limitação pode não ser a não limitação do outro.
Por isso, enquanto as palavras forem usadas para diminuir camadas da população, enquanto as acções forem usadas para restringir camadas da população, nós teremos de actuar. Mais acções continuarão a ser necessárias para consciencializar as pessoas, mais acções continuarão a ser necessárias para informar.
No fim, não posso deixar de parabenizar este grupo de alunos por trazer a discussão ao espaço escolar. Parabéns.
Imagem: https://tecnico.ulisboa.pt/pt/noticias/campus-e-comunidade/primeira-tertulia-do-queerist-delimita-plano-de-acao-futura/
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