João Miguel Tavares E A Violação

O problema ali foi não ter havido violência, tal como não houve um “não” por parte dela, porque ela estava completamente embriagada e andou aos beijos com um deles e eles também estavam completamente bêbados.

Estas foram palavras proferidas pelo João Miguel Tavares no final do passado episódio do programa da TSF e TVI 24 “Governo Sombra“. Em discussão estava a violação, filmada, de uma mulher espanhola por cinco homens que lhe eram próximos. A sentença, de 9 anos de prisão, ilibou-os no entanto da acusação mais grave de violação de uma jovem, durante as festas de San Fermín, em 2016.

Esta decisão levou a uma manifestação extensa por toda a Espanha e obteve eco internacional, pois foi deliberado que não foi uma violação, mas apenas um “abuso sexual continuado”. De acordo com o Código Penal espanhol, agora questionado e com pedidos de alteração, a diferença entre abuso sexual e violação assenta na existência (ou não) do recurso à violência e intimidação. Um dos juízes do processo chegou mesmo a defender a absolvição de todos os agressores, argumentando que o único crime por eles cometido tinha sido o roubo do telemóvel da vítima.

Ora, já ouvi e li muitos disparates vindos do comentador, mas este revelou-se, ainda assim, uma surpresa dada a gravidade obscena das suas palavras. Para João Miguel Tavares o facto da rapariga violada estar embriaga – tal como os seus conhecidos – e não lhes ter dito explicitamente “não” atenua a sua posição de vítima. Obriguei-me a ouvir de novo esta passagem do programa para ter a certeza que não era lapso. E, de facto, não era. João Miguel Tavares colocava-se assim ao lado da muito questionável lei espanhola.

A embriaguez de todas as pessoas envolvidas não desculpabiliza os violadores e muito menos descredibiliza a vítima. Este tipo de discurso, ainda para mais vindo de uma pessoa que tem minorado regularmente a voz de mulheres, muitas vezes em tom paternalista, é de extrema gravidade, porque, por um lado, valida o receio e medo que outras vítimas poderão ter no futuro em denunciar o que lhes foi feito, e por outro empodera aqueles que fizeram.

Perceber que um “não” não é um “sim” e que a ausência de um “não” também não é um “sim” é uma parte fundamental da educação sexual. A cultura de insistência e imposição de homens sobre mulheres está ainda tão embrenhada e é de tal forma transversal na mensagem que damos a rapazes e raparigas desde jovens que muitas vezes estas situações, mesmo as mais extremas como o caso espanhol, são subvalorizadas e descredibilizadas pela lei e pelas próprias pessoas.

E se para uma vítima já será suficientemente traumático todo o episódio vivido, mais difícil será assistir ao questionamento das suas ‘verdadeiras intenções’, das nuances da situação, se estava embriagada ou não, se se ‘meteu a jeito’ ou não, se beijou ou não, se disse “sim” ou não. E isso terá o efeito perverso de as silenciar.

Por isso, não, João Miguel Tavares, não há aqui zonas cinzentas num acto não consentido e macabramente filmado. Levantar dúvidas absolutamente desmesuradas é de uma profunda irresponsabilidade social, não há aqui espaço para os azedumes do costume contra feministas. Porque este será o exemplo mais visceral contra mulheres e para isso não há desculpas.

Fonte: Público.

Por Pedro Carreira

Ativista pelos Direitos Humanos na ILGA Portugal e na esQrever. Opinião expressa a título individual. Instagram/Twitter/TikTok/Mastodon/Bluesky: @pedrojdoc

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