Orgulho Hétero

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Estamos em pleno mês do Orgulho LGBTI e, certamente não por acaso, começam a surgir algumas discussões sobre a existência de Marchas e Prides, afinal de contas, o que é isto do Orgulho LGBTI? E, já que falamos neste assunto, por que não há manifestações do Orgulho Hétero?

Há vários pontos que importam reter se quisermos aprofundar seriamente estes assuntos. Um deles é perceber o contexto e a razão por que surgiram as primeiras manifestações do Orgulho Gay.

Nos Estados Unidos, as pessoas LGBTI, ou percepcionadas como tal, há cinco décadas eram constantemente perseguidas, violentadas pela polícia, assassinadas por ódio trans, homo e bifóbico e os seus direitos eram-lhes negados. Mais, a maioria da sociedade, tal como a lei, revia-se nestes ataques espalhando ódio, violência e vergonha contra as pessoas LGBTI e minorando penas a quem cometesse crimes contra estas pessoas. Um homem poderia alegar em tribunal defesa por pânico ao assassinar uma mulher trans e este factor (chamado gay panic) poderia reduzir-lhe significamente a pena ao ponto de nem cumprir qualquer tempo efectivo na prisão.

Foi em 1969 que, impulsionado pelos motins de Stonewall, o movimento LGBTI moderno reagiu e se organizou contra a sociedade LGBTIfóbica. Com pessoas Trans na linha da frente a darem a cara e a morrerem pela causa – tal como ainda acontece hoje, aliás – surgiram assim as primeiras Marchas do Orgulho Gay.

Vale a pena recordar também que hoje em dia a homossexualidade permanece ilegal em 72 países, sendo que em 45 destes são especificamente as relações sexuais entre mulheres que são consideradas à margem da lei. Há ainda atualmente oito países onde a homossexualidade é punida com a pena capital. Deixemos pois isto ser bem interiorizado quando surge alguma dúvida sobre a importância do Orgulho.

Mas não nos fiquemos por aqui. E em Portugal? Bem, bastará saber que até 1982 a homossexualidade era crime em Portugal para entender o impacto que isto tem na vida de muitas pessoas adultas neste país. Em 1999 foi aprovado um projecto de lei desenhado pela Juventude Socialista para excluir as relações homossexuais das uniões de facto. Foram precisos 3 meses para que, depois de pressões e abaixo-assinados, fosse então revogada. Em 2000, 26 anos depois da revolução do 25 de Abril, surgiu, por fim, a primeira Marcha do Orgulho LGBTI de Lisboa, a primeira do país. Em 2006, no mesmo ano em que Gisberta, uma mulher Trans, foi violada, amarrada e deixada a morrer no fundo de um poço na cidade do Porto, foi realizada a primeira Marcha do Orgulho LGBTI na mesma cidade. No ano seguinte, a idade de consentimento para atos homossexuais em Portugal tornou-se igual à de atos heterossexuais, 14 anos. Em 2010 Portugal tornou-se no sexto país do mundo a permitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Foram precisos mais 6 anos para que casais do mesmo sexo se pudessem candidatar legalmente à adoção. Dois anos depois temos um Presidente da República que, apesar das recomendações de especialistas, vetou o direito à autodeterminação de género.

Estes são apenas alguns exemplos dos avanços e recuos que Portugal tem assistido no que toca aos direitos das pessoas LGBTI, das suas pessoas LGBTI. Apenas alguns exemplos desde que nasci. Importa pois perceber o potencial impacto destrutivo que estes eventos podem ter na percepção que uma pessoa tem sobre si mesma. Quando nasci aquilo que sou era crime. Cresci com constantes notícias de que aquilo que sentia estava errado, aliás, era errado. E quando surgiu o surto do VIH/SIDA, de alguma forma, merecia-o. E quando Gisela e, mais recentemente, Luna foram brutalmente assassinadas, eram duas de nós que morreram às mãos do ódio. E sempre que alguém era humilhado, gozado, apontado, era eu também com ele e com ela. E nem sempre fiz frente a quem agrediu. Naquela pressão diária e constante que sentia dentro de mim em me afastar de toda aquela agressão, quase sempre fugi. Algumas vezes terei inclusive aproximado-me do lado de quem agredia, num ato que entendo agora como de distração a quem esmagava outrem. Não eu.

E isso não é algo de que me orgulhe. Isso, sim, não é algo de que nos devamos orgulhar. Mas todo este confronto, tão exterior como interior, provocou um impasse na minha vida. Como me iria identificar como pessoa no futuro? De que poderia vir a sentir orgulho?

A resposta é hoje clara: ser quem sou. Ser quem somos. LGBTI. Pela inclusão e liberdade de todas as pessoas. Pelo fim da invisibilidade, da discriminação e do ódio. Porque não se trata aqui de uma competição. Não, não temos nem mais nem menos orgulho na nossa identidade do que as pessoas Heterossexuais e Cisgénero, não nos estamos a comparar com ninguém. Estamos, sim, a reivindicar direitos humanos e a mostrar ao mundo que, apesar de tudo o que vivemos, sobrevivemos de cara erguida e orgulhosa. Tal como as restantes pessoas que se beijam, dão as mãos, se abraçam, se falam, de si e da família sem qualquer pudor, sem sequer lhes passar pela cabeça um único pensamento que as afaste de exprimir a sua identidade. Quantos beijos já demos em público sem que inevitavelmente nos surgisse uma sensação de tomada de posição? Quantos beijos já demos em público que não tenham sido politizados? Quantos momentos de hesitação nos fizeram parar? A que custo?

E, para quem continua a não entender a razão da existências de Marchas e Prides, bastará participar numa. Tão simples como isso. Facilmente perceberá que a diversidade é também a nossa força e que há inclusive pessoas heterossexuais que se juntam ao evento por se identificarem com os valores da liberdade e igualdade que partilhamos. Que não restem dúvidas que o Orgulho quer-se pessoal, regional, nacional e universal, em todas as suas dimensões, proximidades e pontos em comum, que são mais do que aqueles que à primeira vista poderíamos julgar.

Talvez a resistência que algumas pessoas sentem em acreditar nisto tudo que escrevi não passe na realidade de um derradeiro preconceito. Para o ultrapassar bastará que apareçam e se juntem, porque mal não vos fará, muito pelo contrário. E a vossa identidade pessoal continuará a ser só vossa, tal como a das restantes pessoas que ali se apresentam e se representam. E assim se tornam um pouco mais livres e vivas. E, sim, absolutamente Orgulhosas.