A revolução sexual de Fever Ray passou pelo NOS Primavera Sound

Se já no NOS Alive se vai sentido a mudança efetiva da representatividade LGBT nos palcos, tal sempre foi verdade no NOS Primavera Sound no Porto, irmão mais novo do homónimo gargantuano de Barcelona. E este ano não foi diferente. Desde a introspecção onírica grunge dos Grizzly Bear à fluidez da sensibilidade sem remorsos de Kelsey Lu, passando por Arca e The Breeders, o espectro queer foi quase totalmente abrangido. Mas nenhuma levou a revolução tão avante como  Fever Ray no segundo dia do festival, o mais quente e menos minado pelo mau tempo.

A sueca Karin Dreijer, outrora metade do duo agora defunto The Knife com o irmão Olof, sempre foi uma artista pouco expansiva. Ciente da privacidade que não pretendia perder, ora usava máscaras nas suas raras aparições públicas e concertos ora escondia-se por detrás de várias camadas de maquilhagem e uma apresentação que fazia jus à claustrofobia da sua música, que teve estreia a solo em 2009. Se olharmos para a capa de Plunge pouco parecia ter mudado na forma como Dreijer se quer ver representada. Mas ouvimos o disco e tudo muda: as canções, igualmente acutilantes e afiadas como uma navalha, são honestas em relação à sua transformação recente e da redescoberta do sexo enquanto mulher queer.

Pessoalmente, não fazia ideia do que esperar de um concerto de Fever Ray, mas certamente não contava com aquilo que vi. Ainda a correr do concerto de Thundercat que deixei a meio, consegui penetrar pela multidão diversa e totalmente heterogénea que caracteriza este festival e assentar relativamente perto do palco para assistir à entrada das seis mulheres que compõem a banda: uma percussionista de instrumentos étnicos, outra mais clássica e de percussão eletrónica, uma teclista, duas backing vocals e Karin. À excepção de Karin, todas elas estavam trajadas para uma rave simultaneamente futurista e camp. As vocalistas definiam bem os papéis de género que ali estavam a dilacerar sem piedade, uma delas hiper-feminina e de trança comprida e outra com almofadas de músculos de halterofilismo. E no meio delas, com uma t-shirt em que se li “I Love Swedish Girls”, cabelo loiro rapado e uma maquilhagem fantasmagórica repleta de glitter, Karin Dreijer.

Não devo ter estado sozinho quando as primeiras canções terminaram e a reação a este orgulhoso creepshow era de alguma tensão e surpresa, totalmente provocadas e provocatórias. Não é todos os dias que assistimos a mulheres explorarem a sua sexualidade de forma tão desinibida e tão totalmente desligada de qualquer fantasia que não a delas. Estava ali a ver uma nova forma de perspectivar a sexualidade feminina e isso, por anos de recalcada visão patriarcal vigente, não deixa de ser perturbador. Mas nada se faz sem rebentar com alguns alicerces e foi isso que a companhia teatral de Dreijer fez.

A efusividade daquela verdade alternativa em jeito de videojogo, com todas as personagens a saltarem de nível e a encontrar outra faceta da sua identidade, cedo se tornou contagiante e absolutamente libertadora. Os ritmos cortantes e milimétricos do disco deram lugar a uma batida mais extrovertida e antagonisticamente latina, convidando todos e todas a participarem naquela emancipação tão pessoal de Karin. Se a necessidade de criar pontes para encontrar o normativo e estabelecer diálogo muitas vezes é real, nesta utopia de rebeldia totalmente disruptora mas verdadeira de Fever Ray, a velha máxima incendiária de não ceder nem dar lugar a compromissos resulta. E de que maneira.