André Mendes: “Sempre fui rapaz, sempre!”

André Mendes LGBTI Trans Autodeterminação de Género Portugal

Sempre fui rapaz, sempre! Lembro-me de pedir a Deus antes de dormir que me transformasse num rapaz!

André Mendes, 17 anos, joga voleibol na equipa feminina do Grupo Desportivo de Fiães onde contou às colegas e ao treinador que o aceitaram. “Ele continua a ser a mesma pessoa, simplesmente agora é quem sempre ele quis ser!

Quando nos aproximamos, após o veto do Presidente da República, da derradeira hipótese de alterar a lei da autodeterminação de género e abranger jovens trans a partir dos 16 anos, vale a pena perceber como um voto favorável no Parlamento pode contornar o veto presidencial e impedir que se adiem as vidas destas pessoas.

É neste sentido que a história de André foi destaque no programa Grande Reportagem da Antena 1, onde é contada a sua ímpar história: “Sou um rapaz numa equipa feminina e eu quero ser uma rapaz numa equipa masculina.” Entre a luta interna que enfrenta desde muito criança, André, que não quer pronunciar o nome dado à nascença, enfrentou também vários desafios em relação à família, à escola e à prática de desporto, uma das suas paixões.

Zélia Figueiredo é a psiquiatra que acompanhou as primeiras consultas de André e, sendo umas das maiores especialistas em Portugal e com décadas de experiência nestes assuntos, explica:

A transexualidade é ainda muito invisível na nossa sociedade e as pessoas ficam em casa, deixam de estudar, isolam-se mesmo da própria família e têm muita dificuldade em falar disso e, portanto, são adolescentes especiais. E há também o aspecto do corpo. Há uma grande vergonha em relação ao corpo, há uma tendência para se esconderem os caracteres sexuais secundários e, portanto, a adolescência não é vivida na sua plenitude. É uma adolescência muito pobre, muito escondida, muito sofrida.

Estes são sentimentos partilhados pela mãe do André, Lisete Silva, que, preocupada, várias vezes e durante anos perguntou ao filho o que é que se passava, tentando adivinhar que talvez o filho gostasse de raparigas: “Se gostar quero é que seja feliz!” A confusão entre orientação sexual e identidade de género é, aliás, ainda hoje muito comum, como explica a psiquiatra:

Quando se fala de transexualidade falamos de identidade de género que se forma por volta dos dois anos e meio, ou seja, uma criança sabe perfeitamente se é menina ou menino ou se se sente mais menina ou menino. Quanto à orientação sexual, estamos a falar de pessoas mais velhas que têm uma orientação sexual – que também não é uma escolha -, mas que é mais tardio. As pessoas já são adolescentes, já lidam melhor com a situação.

Tirar uma fotografia na escola é também um evento de stress para muitas destas pessoas, pois são levadas a vestirem-se de uma forma com a qual não se identificam ou, como no caso do André aos 5 anos, usar um penteado mais arranjado com uns totós que, mal chegou à escola, fez questão de desfazer e desmanchar por completo. A mãe, ao descobrir o que tinha feito o filho ficou zangada, porque, explicou, “não sabia ainda o que se estava a passar.

Mas a sensibilidade de uma mãe perante estas situações fez toda a diferença quando o André se sentiu preparado para falar com ela. Percebeu na altura que tinha ganho um filho. Deixou de ter uma filha e passou a ter um filho. Tinha inclusivamente uma data para marcar a chegada do seu filho à sua vida. Lisete mostrou ter uma inteligência emocional enorme que, segundo Zélia, nem sempre acontece nestas histórias.

André decidiu contar primeiro ao irmão e esperou depois, com sofrimento de ambas as partes, dois meses até contar à mãe. Ele e o irmão prepararam um jantar para lhe contar e, na conversa, o irmão explicou à mãe que no dia seguinte o André ia cortar o cabelo, “ela vai ser homem.” Apesar da confusão inicial, a verdade é que esta comunicação foi fulcral para que a Lisete conseguisse entender pelo que passava o filho e acabou por os aproximar.

Mas em que é que a alteração da lei da mudança de género iria mudar na vida de André? O pragmatismo impõe-se na sua resposta: “A mudança de género e de nome no registo civil seria importante, porque me permitiria frequentar uma casa de banho masculina e assinar os testes com o meu nome, André.

Para votação amanhã no Parlamento estará a proposta de alteração à lei em que, falhadas as negociações iniciais, evoluiu no sentido de admitir um relatório assinado por qualquer médico ou qualquer psicólogo, inscritos nas respetivas ordens profissionais, que ateste a vontade e a posse de informação dos menores entre os 16 e os 18 anos, mas que não tenha qualquer caráter clínico. Um compromisso que poderá significar o fim do adiamento da vida das pessoas trans até à idade adulta.

Sempre fui rapaz, sempre! É uma coisa que não me apareceu de um dia para o outro, desde que me lembro que me senti assim.

Por esta razão, os 18 anos parecem longínquos às crianças e adolescentes trans, especialmente quando começam a ver o seu próprio corpo entrar na puberdade. “Essa espera é péssima para todas as pessoas, até socialmente, porque muitas vezes param de estudar”, explicou Zélia Figueiredo. “O André teve sorte na escola, porque fez saber que queria ser chamado de André e teve docentes muitíssimo flexíveis e, sobretudo, perceberam o que se estava a passar e foram muito tolerantes, mas há escolas em que as pessoas não podem assumir o seu papel de género e continuam escondidas.

Há ainda outro ponto que a nova lei, ainda que não elimine por completo, poderá atenuar e proteger estas pessoas: as situações de bullying que as próprias sofrem por discordância do nome e género legais com as mesmas.

Há situações em grandes liceus do Porto em que as raparigas são vítimas de bullying e esperam por elas, não dentro do liceu, mas fora, insultam-nas e tratam-nas bastante mal. Ora, uma lei que permita que a pessoa faça uma transição como deve ser, respeitando-a completamente, é bastante importante”, remata a psiquiatra.

Amanhã o Parlamento terá nova oportunidade de se pronunciar sobre a lei e, caso consiga a maioria parlamentar, ultrapassar o veto presidencial e fazer história ao proteger as pessoas Trans, porque aos 16 anos, e como aqui foi relatado, a esmagadora maioria das pessoas sabe quem é. Marcelo Rebelo de Sousa atrasou a vida destas pessoas, mas o Parlamento tem agora a derradeira possibilidade de, por fim, as salvar. Sem preconceitos ou desinformação, assim seja!

Nota: Vale a pena escutar a Grande Reportagem da jornalista da Antena 1 Cláudia Aguiar Rodrigues na íntegra.