Acabou de ser aprovada a proposta de lei acerca da autodeterminação de género, depois de reapreciada em plenário da Assembleia da República por exigência da Presidência da República. Teve votos contra do PSD e do CDS/PP e a favor do PS, Bloco de Esquerda, PAN, Verdes, da deputada Teresa Leal Coelho do PSD, e desta vez também do PCP, decisivo para o diploma finalmente avançar e ter agora a sua aprovação derradeira, não podendo agora ser vetado pelo Presidente da República.
Esta nova votação teve lugar depois do veto de Marcelo Rebelo de Sousa, que devolveu o diploma ao Parlamento com a exigência de um relatório médico a acompanhar o pedido de mudança de género em documentação oficial. Uma atitude apenas justificada pelo preconceito de que quem o faz pode mudar de ideias ou quer necessariamente proceder a intervenções cirúrgicas que requerem avaliação médica. Marcelo decidiu portanto ignorar especialistas que falaram em sede de Subcomissão para Igualdade e Não Discriminação.
E teve efeitos claros. Esta nova proposta que foi votada hoje teve a adenda de uma necessidade extra de um relatório por parte de qualquer médico ou psicólogo que afira a livre vontade da pessoa em questão de querer efetivamente proceder à mudança oficial de género. O PSD, representado pelos deputados Carlos Peixoto e Sandra Pereira num golpe de aproveitamento político nojento, foi mais longe e consentiu também o relatório médico, desde que ele fosse patologizante – coisa até negada por Marcelo aquando do veto – e admitisse desconformidade entre género e sexo, ao mesmo tempo que queria ausência de quaisquer condições psicológicas a influenciar a decisão.
Resumindo: que pessoas trans continuassem a ser tratadas como doentes. As mesmas pessoas que têm de atestar a sua identidade pessoal numa miríade de consultórios e especialistas médicos por elas não escolhidos. As mesmas pessoas que são diariamente vexadas em espaços públicos que obriguem a uma separação por género por não terem documentação que as valide. As mesmas pessoas que sofrem discriminação sistémica por parte de todos os que não fizeram o mínimo esforço para compreender a sua luta. O PSD chegou mesmo a afirmar em plenário que sempre foi a favor da autodeterminação de género depois das exigências adicionais totalmente escabrosas que apresentou em nome da Ciência e da Medicina. Precioso. Mas foi logo prontamente alvejado por Isabel Moreira do PS, Sandra Cunha do Bloco de Esquerda e André Silva do PAN.
No entanto a proposta aprovada não é o fim da linha na autodeterminação de género. É melhor do que temos? Sim. Vai facilitar a vida de muitas pessoas trans em situações extremas e de limite? Definitivamente. Mas se há a necessidade de comprovação por parte de um médico ou psicólogo – mesmo que não patologizante, pode ser recusada na mesma – da vontade de alguém afirmar a sua identidade, onde está o “auto” de autodeterminação mesmo?
É no entanto altura de celebrar. Que menos pessoas tenham assim as suas vidas em suspenso pela impossibilidade de definirem quem são. E todos os dias verem essa vontade invalidada com consequências mais nefastas do que poderemos alguma vez imaginar. E que um dia vivamos em Portugal numa sociedade que não menospreze desta forma as pessoas trans e que lhes permita a verdadeira autodeterminação. Individual e sem necessidade de ser coadjuvada por ninguém. Não baixemos agora os braços.
Atualização 31 de julho:
Marcelo Rebelo de Sousa promulgou esta tarde o diploma saído da Assembleia da República sobre alterações à lei da identidade de género, depois de introduzidas alterações por si pedidas.
Na nota publicada depois das audições com os partidos em Belém, Marcelo Rebelo de Sousa refere que, no que à lei da identidade de género diz respeito, a legislação que lhe chegou vai ao encontro do que defende. “Considerando que a alteração aprovada pela Assembleia da República vai, genericamente, no sentido do reparo feito em 9/5/2018, o Presidente da República promulgou o Decreto da Assembleia da República nº 228/XIII relativo ao direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à protecção das características sexuais de cada pessoa”, lê-se.
Atualização 7 de agosto:
A Lei foi hoje publicada em Diário da República! 💪🏳️🌈
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