
“A Camel Toe foi criada como psicoterapia como maneira de lidar com as fragilidades que a sociedade me atribuiu. Por isso esta personagem é bicha, é paneleira, todos os dias vai ser mais bichona: é tipo Pokémon, todos os dias sempre a crescer de paneleirice cá dentro”
O fascínio pelo transformismo e pelo drag não é recente. Algumas das primeiras ativistas LGBT eram de facto drag queens e mesmo em Portugal, a mais antiga discoteca de Lisboa, o Finalmente, é maioritariamente conhecida pelos seus shows transformistas. Mas com o advento do RuPaul’s Drag Race, que fez este ano já uma década de existência, o drag veio para o mainstream e tornou-se parte do tecido da cultura popular, LGBT e não só. Mas toda essa exposição acontece nos Estados Unidos da América, onde as drag queens são de facto hoje já consideradas celebridades – e modelos, cantoras, atrizes, performers – e em Portugal todo esse fascínio ainda tem uma repercussão pouco visível no meio real. Atrevo-me a dizer que alguém que saiba de cor as catchphrases das queens do RuPaul pode não conhecer sequer o nome de uma drag queen que actue na sua cidade.
Para colmatar esta falha o jornalista Emanuel Monteiro seguiu três drag queens portuguesas em vários pontos do país e tentou apresentar várias perspectivas da arte do drag nos dias de hoje. Rebecca Bunny/José Coelho, a mais nova das entrevistadas com apenas 21 anos, mostra a emergência de novas atitudes perante a comunidade e com a própria profissão, onde já apenas interessa ter talento. É fruto da escola RuPaul onde o old school é substituído por uma arte multidisciplinar que passa tanto pela arte performativa como pela recriação das páginas das revistas de moda como a Vogue. Tanto que os standards de perfeição a que se sujeita são tão altos que a levam a mais de quatro horas para construir a personagem. Mas a velha guarda continua de boa saúde e é por aí que passa a história de Luna. Ricardo Magalhães chegou a julgar ser uma mulher trans por não se encaixar nos papéis de género sociais e na formatação masculina, antes de perceber que a sua expressão podia ser mais fluída e viver em plenitude através de Luna. Aqui entra a importância do apoio da mãe no seu bem-estar, a brava Teresa Ferreira, a única totalmente presente na reportagem. Para além de incentivar Luna com roupa e maquilhagem, demostrou que o amor de uma mãe a um filho deve ser sempre incondicional e a fazer com que a sua identidade seja celebrada e não ridicularizada.
Bruno Cunha não teve a mesma sorte e foi expulso da casa dos pais quando, depois de muitos anos de auto-rejeição e vergonha, decidiu não esconder mais a sua homossexualidade e a sua vontade de se exprimir de forma “questionável”, como na altura achou a mãe. E depois de vários episódios de violência homofóbica consigo e com amigos, criou Camel Toe, a sua guerreira. “Quero esquecer conceitos de género. Quero chocar. Quero provocar”, diz, com um look super estilizado e a barba farta repleta de glitter. “Sou palhaça. Mas isto não é só uma palhaçada. Eu tenho uma responsabilidade para com os miúdos LGBT que me possam ver e identificar-se”. Camel Toe mostrou a sua vertente ativista pura, de alguém que pretende romper preconceitos a ser inteiramente e desavergonhadamente Ela. Isto aconteceu durante todo o especial e também num debate que se seguiu na TVI24. Viu-se aí muitas vezes minorada pelos ataques desmesurados de Domingos Machado, também conhecido por Belle Dominique, que se manifestou contra as demonstrações “exageradas” de Orgulho nos “Arraiais e nas Marchas” e que ela não precisava de ser gay o tempo todo. Camel Toe, rolou os olhos, abriu sonoramente o leque com um *thwoorp* ao nível de Katya Zamolodchikova e mandou completamente toda esta argumentação arcaica (e sim, homofóbica) por terra, ressalvando a enorme importância da visibilidade LGBTI+ em todos os campos da sociedade e a necessidade diária de nos fazermos ouvir e não ver os nossos direitos roubados. De não viver em vergonha e no escuro. E que queria ser cada vez mais bicha “A Camel Toe foi criada como psicoterapia como maneira de lidar com as fragilidades que a sociedade me atribuiu. Por isso esta personagem é bicha, é paneleira, todos os dias vai ser mais bichona: é tipo Pokémon, todos os dias sempre a crescer em paneleirice cá dentro”. Amén.
Esta humanização e coragem das pessoas LGBT é rara na televisão portuguesa. E se inicialmente o título “Senhor Traveca” deixou algumas dúvidas, na boca de Camel Toe percebeu-se totalmente a apropriação do insulto. Tivemos as drag queens e os homens gay que as constroem e veneram a contarem as suas histórias. Sem ridículo e com feridas expostas. Mas acima de tudo celebrando os seus triunfos. Quando ainda somos quase exclusivamente inundados de tragédias quando se foca o tema LGBT nos noticiários e restantes programas televisivos, é refrescante ter este testemunho triplo tão positivo e inspirador. Parabéns então ao Emanuel pela iniciativa e à TVI por a levar a cabo. Precisamos de MUITO mais histórias destas e ainda mais variadas. Só por este caminho atingiremos a representatividade que queremos. E merecemos.
Ver reportagem integral no site da TVI
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