Foi há menos de duas semanas que Bruno Cunha e a sua soberba Camel Toe deixaram de ser apenas conhecidos dentro do meio e da noite LGBTI. Com a reportagem “Senhor Traveca” e subsequente debate na TVI, tornaram-se numas das poucas vozes que reivindicam os nossos direitos e combatem quem nos discrimina. Dentro e fora da comunidade, para serem ouvidas, respeitadas e, se caso disso, temidas.
Encontrei-me com o Bruno a meio de uma tarde solarenga de Verão num quiosque do Saldanha e, desde a altura imponente até ao discurso limado e cortante, foi fácil entender de onde veio a confiança para criar uma personagem drag como Camel Toe que rasga papéis de género na cara de quem mais os defende. Ou terá sido o oposto? Terá sido o arrojo desavergonhado de Camel Toe a dar ao Bruno a força para derrubar os últimos armários, aqueles que todos e todas ainda erguemos sem saber?
Esta é a primeira de três partes de uma conversa com o Bruno e a Camel Toe.
O país inteiro ficou a conhecer a Camel Toe há uma semana com a reportagem da TVI: que reacções positivas e negativas tiveste até agora?
Negativas não tive nenhuma, a não ser comentários de pessoas ignorantes nas redes sociais mas não directamente para mim. “Aih, o que é essa bicha, o que é esse gay“, já ninguém aguenta! Quanto ao positivo, tive uma miúda que me disse que se automutilava e que todos os dias sofria bullying por ser gender-fluid, mas que pela primeira vez se identificou com alguém. Tive uma tia que me disse que o filho dela tinha medo de uma drag queen e que não sabia o que era, mas que gostou tanto de ver na televisão que ela depois enviou-me fotografia dele em drag. Outra mulher disse-me que o pai era homofóbico, mas que com a reportagem ganhou uma nova perspectiva sobre o que era ser gay. Acima de tudo coisas positivas, até porque as coisas negativas já me passam um bocado ao lado: “Olha um paneleiro!” e eu, “olha, mais um dia!”. (risos)
Mas há muita violência na exclusão, das pessoas te olharem, de se levantarem quando chegas como já me aconteceu no Porto. Numa situação um miúdo veio ter connosco e nós estávamos normais – normais para nós é sermos bichas, um com cabelo azul, outro com cabelo rosa – porque gostou das nossas cores de cabelo para depois a mãe dizer-lhe para se afastar que não quer que ele se dê com este tipo de gente. Este é um tipo de violência muito pior que levar uma chapada na cara. Mas estava à espera de receber mensagens de ódio e não aconteceu.
Durante a reportagem mostraste que tinhas uma grande inclinação para fazer ativismo enquanto exploravas a arte de fazer drag. Achas importante as duas andarem de mão dada?
Sempre foi assim, a Rebecca Bunny por exemplo faz mais pela moda o que é perfeitamente legítimo, mas o drag sempre foi um ato político. Numa sociedade em que um homem não se pode vestir como mulher, porque é politicamente incorreto, estás a fazer um ato político, estás a contrariar as políticas da sociedade. Drag é um ato político, acabou. Quer queiras quer não, a partir do momento em que fazes uma coisa que a sociedade não te permite é um ato político, porque acreditas em algo diferente. Assumires que és trans, assumires que és seropositivo, são atos políticos, pois estamos a ser politicamente ativos, pois existe uma política definida e estamos a ir contra ela num ato reacionário. O meu drag sempre foi direcionado para o ativismo. Sempre quis pegar no drag não para ser linda e maravilhosa, porque isso já sou todos os dias – aceita! (risos) (tongue pop). Eu sentia-me tão preso, fui tão violado no meu espaço e de todas as pessoas LGBT – chamemos-lhe queer que é para mim mais abrangente, não é tanta caixinha do lésbica, gay, bissexual e trans, é queer, toda a gente que não se enquadra naquela normatividade, qualquer pessoa pode ser queer, incluindo heterossexuais. Tenho amigas heterossexuais que vivem vidas normativas num certo sentido, mas noutro não se encaixam, não querem procriar e são extremamente criticadas, há pessoas que lhes dizem que então não servem para nada, porque uma mulher só vem ao mundo para abrir as pernas, parece.
Por isto as duas coisas não se podem dissociar. Infelizmente quando as pessoas começam a dissociar-se do ativismo começa a ser aquela coisa mais fútil – que é legítima, não quero que as pessoas pensem que a ache inferior – mas não tem o mesmo efeito, porque as drag queens e as pessoas trans sempre foram a linha da frente do ativismo LGBT e isso é uma coisa que as pessoas devem saber. Se nós temos a liberdade que temos hoje em dia, em que estamos aqui a falar abertamente sem sermos espancados ou presos é porque foram as bichonas todas que deram a mão e assumiram a cena. As pioneiras, como a Marsha P. Johnson. Era bicha trans negra, tinha tudo o que a sociedade mais discriminou e hoje em dia até a própria comunidade gay é racista e misógina. E foi ela que atirou a primeira pedra em Stonewall. Por isso é impossível dissociar o drag do ativismo.
No debate que se seguiu houve um grande embate geracional entre ti e a Belle Dominique. Ou se calhar é mais ideológico?
Parem de dizer que é geracional. Eu tenho duas famílias: a biológica e a adotiva. A biológica não lida bem. A adotiva é extremamente religiosa e heteronormativa. O meu pai adotivo tem 64 anos e a mãe um pouco menos e nenhum deles me disse alguma coisa quando fui à televisão em drag. O meu pai encarna aquele macho que não se mistura com paneleiros e bate o pé para me defender. Não me venham com a merda que é geracional. Tanto que existem pessoas com 18 anos iguais à Belle Dominique. O que ela disse afetou-me, fiquei mesmo triste. Finalmente tivemos em televisão portuguesa duas horas de primetime a falar disto de forma positiva, que é o que eu tento passar. Eu não sou a bicha coitadinha. Já chega dessas histórias. Existem imensas pessoas gay e queer que, apesar de tudo o que tenham passado, vivem bem. Mas apareceu-me aquela pessoa que queria passar a imagem de que para sermos aceites e nos integrarmos temos de reproduzir o comportamento heteronormativo. Ela não acredita naquilo. Ela chegou e nem me cumprimentou, extremamente mal-educada, já queria de alguma forma nos perturbar. Mas no final do debate foi-se embora e uma pessoa que a conhece desde quando era mais novo (prefiro não revelar a identidade da pessoa) veio ter comigo e disse-me “Não ligues que eu conheci-a e ela quando era da tua idade era bem pior que tu”. Ela era daquelas que gritava aos sete ventos que era gay e tinham que aceitar. Ou seja, foi uma tentativa de se misturar na sociedade.
Eu próprio já fui homofóbico, porque eu achava que não podia ser gay livremente. Nós queremos ser aceites e achamos que a melhor forma é comportarmo-nos como a sociedade quer. E depois vivemos sempre neste mundo estranho, nem somos gay nem somos hetero. Somos heterossexuais por fora mas depois somos capazes de comportamentos super auto-destrutivos, consumo de drogas, etc. A partir do momento em que comecei a ser a bichona que sou em todo o lado deixei de consumir tantas drogas, de fazer tantas festas, de usar o sexo só como bóia de salvamento. E acho que a Belle Dominique representou isso. Independentemente da idade ou da geração. Temos a Deborah Kristal, por exemplo. É um dinossauro do drag e no Arraial Lisboa Pride saiu do palco e pediu uma ovação para a nova geração dizendo que é ela que nos representa. Ela é inteligente. A Belle Dominique podia ter feito um comeback mas não, quis reproduzir esta ideia de que temos de ser heteronormativos e que continua a destruir a nossa comunidade. É na diferença que temos de existir e não no contrário.
Achas que é possível trazer essas pessoas de volta para este lado da barricada depois deste ciclo vicioso?
Eu tenho muitos amigos brasileiros e o ativismo queer no Brasil é uma coisa brutal. E eles dizem que nós devíamos ser estudados. Porque há comportamentos que temos que são inacreditáveis. A minha colega de casa é brasileira disse-me que não acreditava que iam, em horário nobre, colocar um homem a explicar como é que faz uma vagina para o drag. Nós não falamos de coisas banais, mas depois metemos um gajo a dizer que “a minha piroca ao final da noite parece uma uva-passa”. Eu até perguntei: “Vocês vão passar isso?”. Mas deixei ir, a melhor maneira de desmistificar é assim, qualquer pessoa pode saber como se faz. (“Tens Internet?”). Nós em Portugal vivemos uma culpa católica enorme, o peso da religião é grande e muitos gays sentem-se porcos e com vergonha a seguir ao sexo. Tenho amigos que são as maiores putas porcas (adoro-os porque eu também sou), mas quando se fala abertamente negam tudo e depois são capazes de ir para uma sauna e uma orgia. Ai, vai bicha, sê feliz.
A cultura portuguesa obriga-nos a esta dualidade. Na rua atuamos de uma forma, numa máscara constante. Mesmo em relação à rivalidade Norte-Sul, que é ridícula num país do tamanho de uma caixa de sapatos. Dizem que as pessoas de Lisboa são mais antipáticas, mas em Lisboa mais rapidamente se é direto e sem rodeios enquanto que no Norte, onde ainda sentimos a necessidade de ser mais simpáticos (forçosamente) e esconder mais, prevalece a culpa católica. Somos uma coisa na rua e outra em casa. Como a Belle Dominique disse: “sê gay em casa, no teu espaço”. Uh. NÃO. Vou ser gay em todo o lado que vou. E se as pessoas ficam incomodadas porque salto para cima da mesa e faço um lipsync da Mariah Carey? Se continuarem incomodadas ainda lhes mostro dick pics que os gajos me mandam no Grindr! Até perceberem que eu tenho estes comentários machistas em todo o lado que vou. Querem um homem a ser um homem? Então eu vou ser um gay a ser um gay. Acabou. Vou incomodar.
Segunda parte da entrevista a Camel Toe pode ser lida aqui: Camel Toe no Megafone (II): “Sou os insultos todos: bichona, paneleirona, puta, badalhoca. Mas com glitter e uma peruca bem boa”.
Terceira e última parte pode ser lida aqui: Camel Toe no Megafone (III): “Na Marcha do Porto temos a polícia a controlar-nos como gado. E não temos bandeiras nem palco porque a organização não quer!”
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