Camel Toe no Megafone (II): “Sou os insultos todos: bichona, paneleirona, puta, badalhoca. Mas com glitter e uma peruca bem boa!”

Depois da primeira parte focada na reportagem “Senhor Traveca“, nesta segunda parte da entrevista com a incrível Camel Toe, e o seu criador Bruno Cunha, falámos da origem da personagem, da importância e história do drag e o maior desafio da comunidade LGBT: informação! 

Pergunta da praxe: quando é que começou a tua paixão pelo drag? Que drag queens ou outras divas inspiraram a criação da Camel Toe?

A primeira vez que eu vi drag foi no Pride do Porto, com a Aghata Top e mais umas quantas drags do Porto. Confesso que no início só gostei da Aghata, um drag muito brasileiro. Mas o primeiro contato que tive foi de nojo. Provavelmente porque também me queria libertar como elas. E também há muitas estéticas que não me agradam e pessoalmente não gostava da ideia de me parecer como mulher. Sempre me senti confortável com o corpo de homem. Mas depois em 2009 comecei a ver RuPaul’s Drag Race, tal como esta nova geração, somos todos filhas do RuPaul. Aí comecei a explorar outras queens como a Nina Flowers, da primeira temporada, super andrógina, uma desconstrução. O transformismo clássico não é a minha cena. Mas antigamente era isso que era fora da caixa. Hoje em dia toda a gente fica uma gaja super linda, com a peruca e a maquilhagem certas.

Depois comecei a ver os Club Kids, o Party Monster, o movimento vogueing, Paris is Burning, conhecer o trabalho da Marsha P. Johnson, mesmo as coisas mais antigas do RuPaul. Eu queria, se me apetecesse, acordar um dia e ser uma verruga, vestir-me de verruga o dia todo. Depois comecei a construir a personagem, na Universidade da Covilhã, em 2012 ou 2013, montei-me com um amigo em drag, comecei a fazer festas. Sim, andava em drag na rua na Beira Interior (risos). As pessoas normalmente até têm medo, a discriminação passa por fugirem de mim. Mas há comentários e muitas vezes sentimo-nos palhaços. Mesmo em casas gay. Voltei para o Porto em 2014 comecei a fazer as Groove Balls, inspiradas no Paris is Burning e no movimento dos ballrooms. Entretanto o Zoom contratou-me, que foi onde foi filmada a reportagem da TVI e também no Maus Hábitos. Comecei a trabalhar com fotógrafos e agora em primetime e a virar GIF.

Achas que existe uma maior predisposição dos homens gay (desarmariados) a rasgar papéis de género com drag?

É preciso estudar um pouco a história do drag, que era feito por homens heterossexuais e mesmo o nome drag vem da altura do Shakespeare. Sempre existiu. Mas no século XX foi apropriada pela comunidade queer para viver um pouco a fantasia. Mesmo na cena dos ball rooms, em que as drag queens eram as mães das casas. É importante irmos buscar esta informação, é a única forma de combate. Quando a Belle Dominique diz que somos uma geração de burros ela até tem razão. Nós temos tanta informação e sabemos tão pouco. É importante perceber que o drag era uma maneira de empoderamento e  de viver uma fantasia, principalmente para as comunidades negra e latina. As pessoas caucasianas sempre foram as más da fita, até nós, que vivemos o nosso privilégio. E é preciso estarmos cada vez mais atentos a isso.

Falando nisso, há algo que tenho de referir: o Trumps fez agora uma festa chinesa, com as drag queens vestidas de chinesas. E eu confesso que gosto da imagética, mas é algo que não podemos fazer agora. Nós vivemos do sacrifício destas pessoas que são invisíveis e ainda as usamos desta forma. É como comediantes portugueses que gozam com drag queens e depois vestem-se de drag para fazer uma piada. Ainda no outro dia, numa festa gay, um gajo estava todo vestido de mulher negra e com black face e tudo e a gritar “Big Mama”. Opá. Isto é uma falta de informação tão grande e que advém do nosso privilégio como brancos. Porque podemos. Eu já vi vídeos de uma gaja negra a vestir-se de branca e montes de brancos a perguntar que raio ela estava a fazer. O mesmo que nós fizemos durante anos e fazemos.  Temos de estar atentos a estas coisas. Uma casa como o Trumps não pode fazer isto. É como a claque do Benfica – super homofóbica, incluindo um ou outro que gosta de saunas – vestir-se de drag e fazer a Festa da Bichona. Tal como nós não gostamos que se pergunte “por que é que não há marcha heterossexual”, também as pessoas chinesas não gostam que haja uma festa destas só porque sim. Não vamos fazer isto.

Momento Oprah: a Camel Toe ajudou o Bruno a aceitar-se mais?

Claro que sim. Sem a Camel Toe neste momento eu devia ser uma prostituta drogada qualquer, quando comecei o drag, com uns 23 anos, estava mesmo no fundo do poço. Mesmo naquela de chupar pirocas em casas de banho porque não valia nada. Consumia imensas drogas. Sexo sem preservativo. Todos me diziam que eu era um paneleiro condenado a morrer num cais qualquer, porque é o que acontece aos paneleiros. E quando ouves isso de pessoas da tua família acreditas. O drag foi a minha bóia de salvamento. Comecei a ver vídeos e conhecer queens e perceber que podia ser uma oportunidade de transformar esta raiva. Antes foi uma época horrível, super deprimido. Todas as bichinhas passam por isto, não é? Parem de se fazer vítimas (risos). Façam-se homens. Aliás, façam-se mulheres. Toda a minha vida fui insultado e a Camel Toe é mesmo isso: bichona, paneleirona, puta, badalhoca, todos esses insultos. Mas linda, porque tem glitter. E uma peruca bem boa.

Numa altura em que parece haver uma regressão das políticas de inclusão que fomos conquistando na última década qual achas que é o nosso maior desafio enquanto comunidade?

O maior desafio é mesmo a informação. Acabámos de ter um momento em horário nobre e a própria comunidade atacou-se. Estes movimentos de extrema-direita são naturais e históricos, sempre que há uma crise económica surgem extremismos. É uma resposta ao desequilíbrio. Por isso repito que o desafio é mesmo a informação. E agora vou-me dar uma palmadinha nas costas porque se eu consegui responder tão bem à Belle Dominique naquele debate foi porque tinha informação. É a melhor forma de combater a ignorância. Porque a homofobia (enquanto medo de pessoas homossexuais) não existe. Não é como as outras fobias, é pura ignorância. Portugal tem os direitos que tem mas nós ainda não merecemos o espaço que temos.

Ainda no outro dia vi um miúdo de 20  anos gay a partilhar nas redes que gostava de outros homens gay que se comportavam de forma normal, que não se vestiam para chamar a atenção, que não dizem que são gays. E que não gostava dos que se vestem de forma exuberante, que são exibicionistas. Como sou do Norte vou ter com a mãe dele, prego duas chapadas e espanco a família toda? Não. Com informação conseguimos mais facilmente desarmar argumentos homofóbicos. E eu levei anos a chegar aqui.

Eu sei que tenho muitos privilégios dentro da comunidade drag porque sou um homem branco, masculino e atraente. Por isso mesmo tento usar o espaço que que tenho para derrubar isto. É auto-consciencialização. Perceber o que tens. E isto demora tempo. Não se lê o “Livro das Bichas” – “Capítulo I: as bichas são umas coitadas; Capítulo II: as bichas são umas coitadas” – e fica-se a saber tudo. Eu gosto de conversar com pessoas com pontos de vista opostos porque as discussões fortalecem os nossos argumentos a favor. Parem de dizer “és homofóbico, não falo contigo”. Fala com essa pessoa. Tu próprio vais crescer. Mas parem de responder a comentários que são só de ódio. São sempre os mesmos. Também é um problema das redes sociais, toda a gente tem uma opinião mesmo sem perceber nada do assunto, como acontece com o drag. Informem-se. Vejam o Paris is Burning, vejam o Party Monster, vejam os documentários da Marsha P. Johnson.

Terceira e última parte pode ser lida aqui: Camel Toe no Megafone (III): “Na Marcha do Porto temos a polícia a controlar-nos como gado. E não temos bandeiras nem palco porque a organização não quer!”

Por Nuno Miguel Gonçalves

I lived once. And then I lived again.

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