Camel Toe no Megafone (III): “Na Marcha do Porto temos a polícia a controlar-nos como gado. E não temos bandeiras nem palco porque a organização não quer!”

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Na última parte da minha conversa com a Camel Toe – que começou com a reportagem “Senhor Traveca” e evoluiu para a exploração do ativismo em drag – o assunto fluiu naturalmente para as Marchas de Orgulho enquanto ferramenta fundamental no combate à invisibilidade e discriminação. Mas o Bruno ressalvou um importante factor na politização da luta, que muitas vezes pode ser antagónica ao próprio espírito de celebração e pertença que uma exibição de orgulho deve transbordar. Acima de todas as perspectivações discordantes e posições de batalha que aparentemente devastaram a Marcha do Orgulho do Porto. Ainda no seguimento da pergunta anterior disse:

Quando começarem a ter informação conseguem quebrar os preconceitos. E vou dizer só uma coisa. As Marchas são celebração. Parem de gritar “a rua é nossa”. Não bicha, a rua é de toda a gente. Parem de usar a Marcha para promoção política e sim para celebrar o espaço que foi conquistado.

Discordas da politização da Marcha do Orgulho? Por exemplo com o que aconteceu no Porto este ano?

Eu não fui com a Marcha este ano, depois do que vi. É o terceiro ano que vou. No primeiro ano a organização convidou um rapaz branco heterossexual cisgénero – é importante começar a referir este tipo de coisas para as pessoas perceberem quem é que nos representa – que tinha um discurso extremamente violento. Bate em homofóbicos, que tem um grupo que persegue homofóbicos e dá-lhes coças (respirar fundo). Podes pôr mesmo “respirar fundo” porque não sei que dizer a isto senão: que merda é esta?

No segundo ano, vi uma criança de 10 anos a pedir para falar ao microfone para dizer “a rua não é vossa, a rua é de todos”. Isto porque estavam a gritar “a rua é nossa” enquanto promoviam pontos de vista altamente politizados.

E este ano fui e gosto sempre de dar uma volta, conhecer os miúdos, perceber a perspetiva deles. E vi pais que levaram os filhos pela primeira vez à Marcha com 16 anos, vi um rapaz trans de 17 a mostrar as cicatrizes da mastectomia com o maior orgulho. Fiquei mesmo feliz. Mas depois vejo movimentos como “O Porto Não Se Vende” numa Marcha LGBT. Vejo outro movimento ambientalista. E de repente olho e vejo uma manifestação contra um autocarro e penso “lá vêm as bichas homofóbicas”. Fui lá fazer o que faço sempre que é ir para a frente delas dançar. Mas depois apercebo-me que é a própria organização a fazer uma contra-manifestação para um autocarro de uma associação de empresas LGBT. Eram anti-capitalistas. Tinham uma bandeira anarquista. Estavam junto com “O Porto Não Se Vende”. Uma delas veio ter comigo e com outra drag queen a dizer “nós não estamos contra vocês, vocês podem marchar à vontade”. A criar exclusão logo ali. E depois o comportamento de uma miúda aos berros de forma de causar humilhação às pessoas que estavam no autocarro.

Achei aquilo trinta vezes pior que a homofobia e recusei-me a marchar. Quanto me afastei, uma das pessoas da organização veio ter comigo porque eu sou a “bicha icónica” e eles gostam que eu esteja lá. Perguntou-me porque não estava a marchar. Eu disse-lhe “O que estás a fazer aqui é uma vergonha. Vou tão chateado. Vi pais com medo de ter cá os filhos”. Ou seja, tentamos ter um espaço seguro e nós próprios estamos a causar insegurança. Por crenças políticas. Um dia da Marcha não é um dia para promover quaisquer crenças. Eu tenho o direito a ser um gay, capitalista, cristão e estar na Marcha. A Marcha é para toda a gente LGBT+. E ele responde-me “É para aprenderem a não passarem por cima das minhas ordens”.

Eu sou uma bicha atenta, apesar de não me meter em confusões, mas aquilo são rixas pessoais com pessoas da Variações. Eles diziam que são anti-capitalistas, mas não são nada. As pessoas “anti-capitalistas” estavam de telemóveis na mão e roupas da Zara. Para quem não sabe o grupo Inditex, a que pertence a Zara, é o grupo que mais explora a mão-de-obra infantil e feminina no Mundo. Por isso dizeres-te anti-capitalista com uma camisa da Zara é como dizer “Eu não sou racista. Tanto aperto a mão a um branco como o pescoço a um preto”. É exatamente a mesma coisa. Não me venham com a merda de anti-capitalismo, merda de política porque aquilo foi motivado por razões pessoais. Uma vergonha.

Eu fui para casa em lágrimas a pensar que os miúdos que vieram pela primeira vez celebrar um espaço conquistado e acontece isto. Eu não sou capitalista, não acredito no lucro acima das pessoas, mas se há sistema que não é homofóbico e discriminatório é o capitalismo. Eles metem em capas de revista um olho do cú se estiver a dar dinheiro. Estão-se a cagar se és homem, mulher, trans, negro. Querem é fazer dinheiro. Esta é uma luta que nos ultrapassa e que inclui toda a gente. E no entanto nós continuamos a deixar-nos distrair com isto.

A organização da Marcha do Orgulho do Porto devia fazer, em lugar daquela declaração ridícula, um pedido de desculpas público a admitir que estiveram mal. Tudo o que eu puder dizer para obrigar a esse pedido de desculpas eu vou fazer. Chegaram eles próprios a dizer que “a Marcha é nossa, podemos fazer o que quisermos”. A Marcha não é vossa, é de toda a gente. A minha mãe adotiva foi pela primeira vez à Marcha. Não a encontrei, mas ela no fim do dia disse-me que teve muito medo. É esta a imagem que passamos? Pior ainda é quando as pessoas perceberam que era interno. E depois temos uma Belle Dominique a ir para a televisão dizer aquelas coisas.

Ou seja, neste momento sempre que me aparece uma homofóbica à frente eu estou-me a cagar. A mim quem me preocupa são os homossexuais, as lésbicas, todas as pessoas que estão do meu lado. Já tive pessoas a perguntarem se eu não uso preservativo e quando sabem que tomo PrEP ripostam com “Ai mas não tens vergonha?”.

O que me preocupa é que a taxa de infeção por VIH está a aumentar imenso na faixa etária dos 20 aos 25. Quero lá saber do anti-capitalismo. Só me apetece esbofeteá-los de uma ponta à outra. Escreve isto, porque se virem a Camel Toe à frente, a sério, fujam. Quando pergunto porque é que a Câmara Municipal do Porto não tem uma bandeira arco-íris no mês do Orgulho, respondem-me que não se querem dar com esse tipo de gente. Afinal queremos ser reconhecidos pelo sistema ou não? No Porto a polícia não está para nos proteger, está lá para nos controlar. Parecemos gado a ir para o matadouro. Não nos dão um palco, não nos içam uma bandeira. Nada. Porquê? Porque a organização da Marcha do Porto não quer, são um grupo de pessoas anarquistas, anti-capitalistas. Muito bem, mas não obriguem toda a gente a sê-lo.

Ainda bem que houve pessoas LGBT que pensaram em fazer dinheiro connosco em vez de serem outros. As drag queens da Marcha do Porto estão lá a fazer voluntariado. Isso não é exploração? Fazer drag é caro, dá trabalho. Pelo movimento? Puta que os pariu. As minhas perucas custam dinheiro, a minha maquilhagem custa dinheiro, o meu tempo custa dinheiro. Quero ser pago. Simples. Eu para ir à TVI tive de trabalhar muito, é muito dinheiro e muito tempo. Ninguém me pagou para estar ali a representar a comunidade. Por isso eu quero, quando me chamam para um espetáculo num bar ou num Marcha, que me paguem. Estar um dia inteiro de saltos e com a pilinha para trás não é fácil. Tem de ser pago.

Pela primeira vez fui à Marcha do Orgulho de Lisboa e fiquei super contente. Vi pessoas anarquistas, anti-capitalistas juntamente com pessoas mais capitalistas, mas estávamos todos ali pelo mesmo. Chegar ao fim de uma Marcha e ter edifícios governamentais com as bandeiras da diversidade e o Arraial Pride estar incluído nas Festas de Lisboa são reconhecimentos que as pessoas não nos podem tirar.

A Marcha do Porto, enquanto aquela organização não perceber isso, é somente ridícula. E eu recuso-me a estar lá. Se eles me foderem muito a cabeça faço uma contra-Marcha e acho que consigo muito mais que eles. Eles não criaram a Marcha do Porto, piça nenhuma. A Marcha é uma consequência de movimentos de outros países, tal como a Marcha de Lisboa. É uma celebração de direitos adquiridos. Organizem outras manifestações se quiserem.

Querem falar de pink washing? Ainda no outro dia me vieram falar do “Call Me By Your Name” em que nenhum ator é homossexual. Duas bichas brancas em Itália. O filme é lindo e eles são gostosos e as bichas não podem ver um rabinho de saias não é? Mas dá dinheiro. Dêem mais trabalho a pessoas como o criador do Pose (Ryan Murphy) ou as duas realizadoras trans do Sense8 (as Wachowski). E no tema do capitalismo: a H&M está agora a fazer campanhas com drag queens como modelos. Achas que se eles me ligarem eu não vou fazer? Anti-capitalista o caralho, passa para cá o dinheirinho que vai dar muito jeito.

Se concordo que se faça dinheiro com uma causa humanitária? Não. Mas isto é algo que vai dar representação e visibilidade. Com uma drag queen num cartaz de 3 metros a aparecer em pleno Chiado com toda a gente a ser obrigada a ver-nos. Não se podem esconder, nós estamos aqui. É isso que me importa. Se há um conjunto de empresas que vai dar trabalho a drag queens, pessoas trans, pessoas gay, lésbicas e que vão ter um local de trabalho saudável: seja. Melhor do que ir para uma empresa onde todos nos tratam mal e depois põe uma bandeira arco-íris em junho. Concentrem-se em lutas a sério.

Em Portugal a PrEP já está no SNS. Sabes quantas pessoas foram a consultas pela PrEP? No Porto, acho que nem 30. E estamos preocupados com anti-capitalismo? Vamos falar de coisas sérias. Vamos falar do preconceito das pessoas com VIH numa altura em que o preconceito mata mais que a doença? Vamos parar de usar frases como “podes ser gay, mas sê homem”? Vamos parar de dizer que trabalhei que nem um preto? Vamos deixar de dizer “ai, que nojo, uma vagina”?

Eu trabalho com a Abraço, falo com miúdos, incentivo os testes ao VIH e muitas vezes fazem perguntas, como um miúdo de 19 anos, do estilo “passa pelo beijo?”. Isto é que é assustador. Esta falta de informação. É importante dar visibilidade, focarmo-nos na educação e promover a discussão deste tipo de coisas. É por isso que faço drag. Algumas pessoas nem sabem porque marcham. Alguns amigos meus nem se associam ao movimento. Um deles até tinha vergonha de estar comigo, quando eu comecei a fazer drag. E agora é dos que mais me apoia. Era só falta de informação e ignorância. Percebeu a importância de eu criar uma personagem tão forte que as pessoas são obrigadas a recuar e a devolver o espaço que nos pertence. Quando estou em drag entro num sítio homofóbico e são obrigadas a recuar. Se entro fora de drag insultam-me.

Que podemos esperar da Camel Toe nos próximos tempos? Onde a poderemos ver?

Não sei. Parei de trabalhar em bares. Era muito cansativo. Este fim de semana filmei um videoclip com Os Azeitonas que vai sair em Setembro ou Outubro. Quero trabalhar em fotografia e na parte política. É o que eu gosto. Até sou capaz de aparecer de vez em quando em alguma festa, mas para já não. Estou a criar um canal YouTube para ter o Bruno e a Camel Toe em conjunto, para combater alguma falta de informação. Custa-me que as pessoas fora do armário sejam sempre motivo de chacota nos comentários. Não há ninguém em Portugal a falar deste tipo de questões. E pronto, vou fazer. Gosto de falar disto e a única maneira de fortalecer a nossa comunidade é com informação e discussão. Mesmo com a reportagem da TVI, houve comentários negativos, mas pelo menos as pessoas estão a discutir sobre questões de género.

E as pessoas estão preocupadas com anti-capitalismo e pink washing? Ajudem-me a perceber. E da próxima vez que quiserem ir para a Marcha do Orgulho fazer uma manifestação anti-capitalista fiquem em casa a comer colheres de merda. Porque estar a chatear as pessoas que estão felizes e querem celebrar o dia é só triste.

Preparem-se portanto para a estação da Camel Toe. Promete ser tão incendiária, transgressora e fabulosa quanto ela. 

Por Nuno Miguel Gonçalves

I lived once. And then I lived again.

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