Joaquim Monchique Sobe a Cortina da Homofobia Internalizada em Portugal

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Corre o ano de 2018. Em cima do palco uma peça em cena há oito anos e já visto por mais de 100.000 pessoas. Um sucesso retumbante, adaptado de outro vindo da Argentina, agora em reposição para mais milhares por ele passarem. Uma família da Margem Sul com todas as suas agruras e uma matriarca cheia de pêlo na venta. E promovem-se temas como a homofobia, misoginia e xenofobia. Sim. Não disse discutem-se, exploram-se, descontroem-se. Disse promovem-se. Falo, claro, de “Mais Respeito que Sou Tua Mãe” de e com Joaquim Monchique.

Uma parte fundamental do enredo centra-se na homossexualidade do filho mais velho, interpretado por Rui Andrade, que é forçado a sair do armário depois da mãe ser apanhada em linhas cruzadas com o seu namorado. Depois de ambos trocarem carícias paneleiras e chamarem chupa-pilas um ao outro (e de muitas agruras da parte da mãe para como revelar tal cataclismo à família), esse mesmo namorado morre num acidente de mota levando a um ataque de histerismo vaudeville por parte do filho. Antes de ser acusado, com toda a razão, de ser um social justice warrior, demasiado crítico de tudo o que é humor leviano, posso dizer que também me passou isso pela cabeça. Muitas vezes estou tão formatado para olhar para estas representações erradas de pessoas LGBT como nocivas que nem dou espaço para ver que elas estão a tentar ser equalizadoras e até retratadas de forma positiva. Infelizmente não foi o caso.

Depois de muito chorar o namorado morto, o filho encontra uma rapariga (menor, talvez) num almoço com amigos dos pais e é apanhado a fornicá-la como um “cão de rua”. Passado pouco tempo grita em plenos pulmões que encontrou um novo caminho e deixado a vida antiga para trás, enquanto a mãe se regozija do filho ter “regenerado”. Esta palavra ainda está a ecoar na minha cabeça. “REGENERADO”. Aquele que tinha degenerado e voltou ao caminho certo. Uma escolha por ele feita e desfeita e afastando, infelizmente, qualquer possibilidade de ser bissexual – que seria extremamente bem-vinda, já agora. Encontra depois outra mulher mais tarde e tem com ela uma criança, o neto que a avó sempre quis. Uma família como deve ser e não uma “modernice” como poderia ter sido a outra.

Acho que não preciso de explorar muito tudo o que está errado aqui. Mas tudo advém de um elemento muito simples e que premeia ainda a cultura em Portugal, país onde a legislação dirigida a pessoas LGBT mudou mas os costumes não: HOMOFOBIA INTERNALIZADA. Neste caso o acto de não reconhecer a visibilidade totalmente errada e deturpada de (neste caso) homens gay que regeneram. REGENERAM. De promover tal como algo salutar e de respeito, assente nos valores tradicionais da família. Quando Joaquim Monchique fez a rábula “Bichas Modernas” no programa da RTP “Estado de Graça”, não me perguntei como é que a caracterização era tão brilhante. Aliás, é de ressalvar que Monchique é um actor de comédia extremamente talentoso e tal é a única ressalva deste desastre. Mas só torna tudo ainda mais trágico. A caracterização era, pois, um retrato.

Como é que paramos de inflingir a nós próprios estas micro-agressões tão acutilantes e que nos inferiorizam? Tudo para sacar umas quantas gargalhadas? É importante parafrasear Hannah Gadsby aqui e perguntar se esta humildade de humor auto-depreciativo e auto-destrutivo não é simplesmente humilhação. Para puro gáudio do público em geral, que soltava gargalhadas ensurdecedoras com as piadas mais homofóbicas e com os termos mais pejorativos que podem ser aplicados a qualquer homem gay. Este tipo de humor que normaliza a homofobia quando feito por pessoas LGBT só promove uma coisa: ódio. O público vai justificar a sua potencial fobia, tem carta branca para isso. E o autor ou autora vão odiar-se ainda mais nesta representação disforme deles próprios. Mais fundo no armário. Mais ressentimento por quem não está nele. Menos e menos e menos amor próprio.

Não é esta a sociedade em que quero viver. Mas em Portugal é assim. O nosso panorama cultural está repleto desta homofobia internalizada que teima em persistir com o passar dos tempos e com os avanços das leis que nos protegem e nos deveriam elevar. Não temos ninguém abertamente LGBT a falar destes assuntos de forma a descontruí-los e informar o público. Ninguém. Mas temos muitos artistas na ribalta a apresentar por tempo indefinido caricaturas e retratos da nossa comunidade que nos são nocivos e nos atrasam em décadas e décadas. Não podemos permitir mais isto. A arte e a cultura são os veículos mais importantes no caminho pela visibilidade e igualdade junto do grande público, especialmente quando têm este tipo de projeção. Mais do que qualquer mudança legislativa. Aproximam as nossas histórias da população em geral e humaniza-nos. Aqui no entanto, só existe a perpétua demonização das pessoas LGBT. Até quando?

Imagem: Fonte de Produção

7 comentários

  1. Finalmente alguém coloca o dedo neste ferida! Fui ver este espectáculo há menos de um mês e identifico-me como tudo o que foi descrito neste texto. Confesso que me custou, ao início, aceitar o que estava a ver. E tentei, várias vezes, arranjar ali algo de positivo, uma razão para me conseguir rir de algumas coisas. Não consegui, infelizmente. Foi desconfortável para mim assistir a alguns momentos da peça e senti que também foi para os meus pais que estavam ao meu lado. Continuo a achar que o Joaquim Monchique é um animal de palco, no bom sentido, mas nesta peça o humor é assente num festival de estereótipos velhos e ultrapassados. Está na altura da geração do Joaquim Monchique sair do armário e conquistar o povo pelo lado certo da história!

    1. Fomos ver sem saber, na realidade, ao que íamos e foi com choque que assistimos àquelas 2h de espetáculo em que éramos a punchline. Em que as pessoas se riram desalmadamente às nossas custas. Estivemos aquelas 2h à espera de uma desconstrução do que tinha sido apresentado, mas não havia nada a acrescentar, era mesmo aquilo que tinha sido apresentado perante a plateia que, com exceção de um outro casal gay que calhou estar a nosso lado igualmente constrangido, se riu e aplaudiu de pé. Saímos de lá como se tivessemos acabado de levar um murro no estômago. Sair da bolha é imprescindível para que não se perca a noção da realidade, mas o murro ainda hoje dói.
      Obrigado pelo comentário!

    2. Nem mais. Foi frustrante aquela expectativa que o enredo desse a volta e se tornasse menos demonizante. E em vão. Ainda não consegui que me saísse da cabeça o “regenerado”. É das coisas mais aviltantes que vi na representação de pessoas LGBT na cultura Portuguesa. E estamos em 2018. Surreal. Abraços!

  2. Excelente artigo. Espero que seja uma oportunidade de aprendizagem para os que a leiam e ainda não perceberam a importância de virar a página.

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