À Conversa com Stephan Elliott, realizador de Priscilla, Rainha do Deserto e júri do Miss Drag Lisboa 2018: “A cena drag está a desaparecer na Austrália”

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Uma das surpresas mais bem guardadas do Miss Drag Lisboa é o quinto membro do júri: Stephan Elliott, cineasta australiano responsável por um dos maiores sucessos do cinema LGBT de sempre, Priscilla, Rainha do Deserto. O filme sobre a vida de três drag queens nos anos 90 trouxe para a ribalta assuntos que simplesmente não eram falados. De todo. E enquanto o resto do Mundo se escondia com a crise da SIDA, a Austrália ripostava: “Quanto comecei a fazer Priscilla, a Austrália estava a revolucionar o drag. Há uma história negra por detrás de tudo isto e no início dos anos 90, o VIH e a SIDA estavam a amedrontar toda a gente e foi incrível ver um pequeno país decidir que estavam fartos de ter medo e fazer positivo algo com isso. Foi aí que aconteceu esse movimento único na Austrália em que a cena drag explodiu, enquanto que no resto do mundo estava completamente parada no tempo. As drag queen lá já não estavam simplesmente a fazer de Barbara Streisand ou a Bette Midler; de repente tornou-se quase em kabuki (teatro japonês) ou pura performance artística. Começaram a fazer algo realmente novo e bizarro e isso foi a razão pela qual eu achei que devia capturar isso em Priscilla. Era completamente fora e queríamos fazer mais e mais extravagante. E o resto é História.

Naturalmente, vê com agrado a evolução que viu acontecer com o drag desde então: “Desde que o drag começou a ser popular pelo mundo fora que muitas pessoas da área da música e da dança entenderam que havia ali dinheiro e que se podiam exprimir profissionalmente naquela arte. Começámos a ver pessoas muito talentosas a experimentar o drag e a fluidez de género. Ainda há um percurso pela frente, mas cada vez menos há playback com artistas de enorme talento a cantar ao vivo e isso é algo que explorámos na adaptação musical de Priscilla: não precisam de fazer lip-sync! Essa é uma das evoluções que mais me impressionam, vemos uma drag queen a entrar no palco e depois ouvimos o seu vozeirão incrível. Por outro lado, isto retira alguma hipótese a pessoas que, como eu, não sabe cantar e que foi até um dos pretextos quando surgiu esta forma de arte. Mas faz parte da evolução, veremos onde nos leva!”

Priscilla, Queen of the Desert (1994)

Contudo vê agora um retrocesso a acontecer no seu país Natal. O conservadorismo e movimentos de direita que têm ganho projeção por todo o mundo estão também a ter os seus efeitos nefastos, mesmo com a recente vitória da aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo: “O conservadorismo está a tomar conta da Austrália. E a cena drag na Austrália está a morrer com isso. Mesmo o debate pela igualdade no acesso ao casamento foi tenebroso e das coisas mais tristes que vi na vida. A quantidade de barulho e raiva a serem projetados. Mais de 70% do país estava favorável à aprovação da lei, mas havia partidos políticos embrenhados em fazer com que isso não acontecesse. E a cena drag está mesmo a desaparecer. Foi uma das razões pelas quais saí até surgir uma nova vaga. Vejo uma sociedade ultra-conservadora a tomar conta do país e não sou capaz de viver lá por enquanto.”

O realizador saiu do armário em 2012 na entrega de prémios da Academia Australiana para Cinema e Televisão. Desde então que essa liberdade e abertura têm influenciado grandemente o seu trabalho: “Tive um pai que nunca aprovou a minha homossexualidade, em que mesmo depois do Priscilla continuava a perguntar-me quando me iria casar e se conhecia alguma rapariga bonita. Foi um período bastante difícil e que se prolongou por vários anos. Foi estranho ter realizado um dos filmes que mais influenciou toda uma geração da população LGBT e não podia ainda sair do armário. Por fim, o momento chegou e falei com o meu pai, disse-lhe que aquela situação não se podia prolongar mais, que era ridícula e ele não gostou. Todo o tempo de espera, uma década, obrigou-me a canalizar aqueles sentimentos para o cinema, misturados com alguma confusão pessoal, mas foram o que fizeram aqueles filmes. Não o vejo como algo negativo, mas como algo que simplesmente aconteceu”. E o seu último filme, Swinging Safari – que o junta novamente a um dos atores de Priscilla, Guy Pearce, bem como a eterna Kylie Minogue – é reflexo dessa nova liberdade e capacidade de se tornar mais visível: “Aquele filme conta o percurso do rapaz que cresceu para fazer o Priscilla. Não é um filme de temática gay, mas quando o vemos percebemos que está tudo lá, o rapaz confuso  a tentar perceber o mundo e quem é, eu a tentar sair do armário. Foi absolutamente libertador, mas também meteu-me medo. O filme é uma recriação da minha infância o que é muito revelador. Mas o que se retrata ali ainda acontece hoje em dia, ainda é assustador!”

Swinging Safari (2018)

Quando falamos da queda na representação de pessoas LGBT no cinema, culpa novamente alguns sistemas vigentes nacionalistas e de direita: “Estamos a assistir ao regresso destes grupos conservadores. Bastará ver as vozes que alimentaram a eleição de Trump, é preocupante. Tivemos Obama a legalizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a iluminar a Casa Branca com as cores do arco-íris na altura do Pride, mas senti na altura que iria haver um ressurgimento do conservadorismo, porque era demasiado para aquelas pessoas. Trump foi uma resposta também a isso. Mas julgo ser um ciclo, iremos dar a volta. Mais importante agora é termos mais personagens LGBT na cultura mainstream, não têm que ser estereótipos, apenas personagens, sem uma mensagem política óbvia. Como a Ruby Rose – que vai interpretar o papel de Batwoman, uma superheroína abertamente LGBT – que é uma rapariga lindíssima e que é lésbica, não se rala com isso e foi criticada por isso mesmo. É errado. O que significa não ser lésbica ou gay o suficiente?! Ela saiu do armário aos 11 anos, que mais querem dela?! O melhor que ela pode fazer é continuar com o filme e fazer um bom trabalho”.

E Stephan também tinha algo a dizer sobre as recentes polémicas que incluiram a que Scarlett Johansson se envolveu quando foi anunciado que iria interpretar o papel de um homem trans: “Em Hollywood eles não querem saber. Contratam alguém que vá vender bilhetes. Eu tive bastantes filmes que ficaram para trás porque basicamente me disseram qual era o argumento, qual era o elenco – com um casting totalmente errado. Quando estão 200 milhões de dólares em jogo, as pessoas da indústria estão apenas a cobrir o investimento. Abomino isso completamente mas consigo compreender. Ter uma estrela ou alguém desconhecido faz toda a diferença para os estúdios. É uma questão totalmente económica.”

Stephan, é, como não podia deixar de ser, um amante declarado da arte do drag e como é casado com um descendente de portugueses e brasileiros deparou-se nas ruas de Lisboa com o evento Miss Drag Lisboa e ficou extasiado: “Estava em Lisboa apenas há 10 dias  e comecei a ver a publicidade. Achei interessante e pensei que não via nada assim há algum tempo. Isto é o ovo de ouro que andava à procura há algum tempo e estou muito excitado em relação a isso. O drag está numa fase muito interessante. E há que creditar o RuPaul’s Drag Race. E o RuPaul não é de todo um fã do Priscilla, já agora. Ele disse-me pessoalmente que prefere o meu filme seguinte que mal foi lançado, Welcome to Woop Woop. E também quero mencionar a Lady Gaga, é olhar para as coisas incríveis que ela faz, é a maior performer drag do Mundo. Mas deve ser exaustivo, ter de acordar todos os dias e pensar em algo totalmente novo para fazer.” E outra drag queen também não escapou a elogios:Conchita Wurst. Sou fã dela. Quando fomos à Áustria no ano a seguir a ela ter ganho a Eurovisão, entrámos num bar e estava totalmente cheio de Conchitas e todas as formas e feitios. Foi das coisas mais engraçadas que já vi”.

Poderão ver o Stephan Elliott logo à noite no Estúdio Time Out, onde vai integrar o júri do concurso Miss Drag Lisboa, também parte do programa do festival Queer Lisboa 22. Ainda podem comprar bilhetes na Ticketline e o espetáculo começa pelas 23h30.

Vamos celebrar a revolução que o drag proporciona e não tomar garantido que esta liberdade pode-nos ser roubada a qualquer momento. É só baixarmos os braços. Por isso, até logo!

Por Nuno Miguel Gonçalves

I lived once. And then I lived again.

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