Narrativas Queer, Museus e representatividade

Luís XIV
“Retrato de Luís XIV com trajes de coroação” de Hyacinthe Rigaud,1701, Museu do Louvre – Paris

No passado dia 17 deste mês estive presente na Conferência Anual da Acesso Cultura que se realizou na Biblioteca de Marvila e que teve como tema “E este património? A presença LGBTQI+ no Ano Europeu do Património Cultural”.

Os painéis tiveram várias presenças das quais destaco: Margarida Lima de Faria (AMPLOS), Sara Martinho (investigadora e ativista), André Murraças (encenador, dramaturgo e responsável pelo Queerquivo), Susana Gomes da Silva (coordenadora de educação da Fundação Calouste Gulbenkian), Ana Pérez-Quiroga (artista visual), Odete (ativista, performer, dj), Pedro Marum (curador, artista, dj, fundador da Rabbit Hole).

Este encontro foi, para mim, um espoletar de sentimentos. Ajudou-me a ser uma pessoa mais esclarecida no que diz respeito aos conceitos que me eram desconhecidos ou cujos significados eu confundia: identidade de género, expressão de género, orientação sexual e sexo biológico (espreitem The Genderbread Person). Aprendi a diferença entre trans e cis. Passei a compreender e a saber que sou hetero-cis. E é na posição de hetero-cis que venho manifestar a minha necessidade de saber mais sobre este mundo que é o nosso e que nos é desconhecido de uma forma geral.

Faço uma ressalva de que o interesse por estas questões por parte dos profissionais da cultura ficou manifestamente demonstrado na adesão à conferência. Sou associada da Acesso Cultura e sendo que esta foi a 3ª Conferência Anual em que participei, pude comparar a adesão à mesma. Enquanto que nos anos anteriores havia sempre casa cheia, este ano revelou que, ou não há interesse por parte dos profissionais em querer colmatar a sua falta de conhecimentos acerca do assunto ou, simplesmente, mais uma vez nos debatemos com “o não assunto”.

Mas é um assunto. E é urgente, importante, fundamental. Há, sem dúvida, uma urgência na desconstrução da heteronormatividade por várias razões: pelo respeito entre as pessoas em geral, por mais amor pelo próximo, até diria mesmo por uma maior paz social e familiar.

E é neste ponto que os museus e as instituições culturais no geral devem entrar em ação. A palavra-chave é representatividade. A representatividade importa, não pode ser ignorada. Se eu gosto de me ver, de alguma forma, representada numa exposição ou de me identificar na história de vida um autor, todos o sentirão, de uma forma mais ou menos consciente. Torna-se assim, imprescindível, preparar os profissionais de museus de forma a conseguirem distanciar-se das coleções para as verem com outro olhar, descobrir as histórias escondidas que contam… ou será que não estão escondidas e nós é que não as sabemos/queremos ver? Neste ponto em particular Susana Gomes da Silva esclarece: o património são as narrativas que construímos a partir dos objetos. Como pegar na coleção e olhá-la com os olhos de hoje? Que discurso de visibilidade posso construir com a coleção que tenho? E para que serve? Será que as pessoas virão? O que leverão para casa com elas após esta experiência?

Os museus têm uma função educativa e nesse campo, regra geral, estamos (profissionais de museus) todos de acordo. No entanto, como poderão os museus abrir espaço ao debate em sociedade com uma atitude transformadora?

A título de exemplo recordo a exposição que teve lugar no Museu Gulbenkian o ano passado, a qual foi premiada pela ILGA: A Coleção Gulbekian sai do Armário Dourado – Narrativas Queer na Coleção Gulbenkian. As peças dos museus podem ter percursos, histórias ou mesmo processos de autoria ligados aos mais variados assuntos e a visão queer não é excepção.

Em setembro estive na The Inclusive Museum Conference em Granada (Espanha) onde pude conhecer Nikki Sullivan, curadora no Migration Museum em Adelaide na Australia. Nikki abordou questões como a relação da prática curatorial e a inclusão LGBTQI+ nos museus e exposições, bem como o facto do poder das organizações culturais ser maioritariamente masculino.

De acordo com a curadora há, de facto, uma marginalização da temática LGBTQI+, e em parte, isso deve-se ao facto da maioria das organizações estarem sob a alçada do Estado e o Estado não quer, muitas vezes, ser associado à temática gay. Se o fizer, vai revelar a sua ideologia, vai mostrar que está a apoiar a causa.

Segundo Nikki, somos treinados para ser de determinada forma mas o queer rompe com isso. Podemos ser diferentes. Somos, na realidade, todos diferentes; e a diferença, por vezes, causa desconforto. A heterossexualidade nos museus é vista como a normalidade – a heteronormatividade.

Como tornar o queer parte da prática diária? Trata-se, por vezes de um assunto problemático, pelo que vale a pena tentar o apoio de um colega, como tem sido o caso de Nikki. Tendo como argumento a inclusão, que está presente na lei e isso tem relevância, a instituição deve traçar um plano de ação LGBTQI+. Se os museus são de facto agentes de mudança social na comunidade, devem promover a qualidade de vida das pessoas, e isso inclui todas as pessoas.

Outra questão que foi levantada foi a seguinte: haverá diferenças na facilidade de comunicar o Queer em exposições de arte em detrimento de outro conteúdo?

Uma exposição da qual Nikki foi curadora abordou a temática Queer, onde foi destacado um conceito em particular: lavander marriage. Este conceito era no fundo o nome de um manequim que estava exposto com um chapéu de senhora, uma barba e um blazer cor de rosa. Esta expressão é usada para definir o casamento entre uma mulher e um homem, ambos homossexuais, em que o casamento servia para manter as aparências quando no fundo existia um acordo mútuo em que cada um fazia a sua vida independente com o parceiro/a que queria. Nikki referiu que os lavander marriages existiram com frequência nos anos 50, antes da revolução hippie. A curadora teve a oportunidade de observar a estranheza com que os visitantes reagiam ao manequim e ao desconhecimento do conceito.

Neste mesmo encontro em Granada, a comunicação de Erica Robenalt, professora assistente da Universidade de Newcastle, foi, de certa forma, complementar à de Nikki. Afinal o que é o Queer? Como posicionar o Queer no museu? E como é que o público encara esse conceito no tema de uma exposição?

O Queer representa a luta entre o que é considerado “normal”; tem a desnaturalização como primeira estratégia e recusa-se a  cristalizar uma forma específica; o Queer mantém uma relação de resistência com tudo aquilo que constitui o normal. O Queer é assim uma identidade no campo da sexualidade e do género, tem uma posição política e teórica e constitui um verbo só por si. Erica fez referência ao autor José Esteban Munoz enquanto teórico da temática, bem como à exposição Coming Out: Sexuality, Gender  and Identity. Esta exposição fez parte das comemorações dos 50 anos da descriminalização parcial dos atos homossexuais em Inglaterra e Gales.

Nota: Escolhi o retrato de Luís XIV para ilustrar este texto para que possam analisar os seus elementos: as roupas são femininas ou masculinas? E a peruca? E os sapatos de salto alto?