LEFFEST: O Terrorismo de Género de Suspiria

suspiria

O cinema de terror italiano, nomeadamente o género denominado giallo, teve a sua época de ouro nos anos 60 e 70. Sempre colocou na protagonização dos seus filmes, mulheres, normalmente perseguidas e vítimas de um homem ou ser fantasmagórico. Um dos expoentes máximos da arte foi Suspiria de Dario Argento, lançado em 1977 e protagonizado por Jessica Harper. Era o primeiro de três filmes dedicados a um triunvirato de bruxas que dominavam o mundo e uma obra-prima de arrojo visual e da utilização da cinematografia e realização para, mais do que contar uma história, criar sensações de uma profundidade visceral.

Luca Guadagnino, realizador de Call Me Be Your Name e I am Love, pega na mesma premissa do filme de Argento para também dar asas à liberdade das imagens que só o cinema parece permitir. Mas leva essa imagética mais além a fazer-se acompanhar de uma vertente política completamente inexistente no original. Susie Bannion é uma estudante americana de dança que chega a uma prestigiada companhia numa época tumultuosa para a mesma e para a própria cidade de Berlim, ainda dividida e vítima de inúmeros atos de terrorismo e manifestação por partes de grupos extremistas como o Baader-Meinhof. É neste cenário de instabilidade que Guadagnino erige a sua história de bruxas e do seu conventículo. Afinal de contas, historicamente, bruxas não eram nada mais que mulheres que recusavam ceder ao patriarcado e usavam o seu poder para lutar por si e pelas suas irmãs. A própria palavra “conventículo” também pode significar assembleia clandestina de maquinação do mal ou casa de prostituição ou bordel. Bruxas, putas, malditas.

A violência estilizada em Suspiria, numa elevação meticulosa do ambiente giallo dos anos 70 a um novo e arrojado patamar artístico, pode impressionar aqueles que estavam curiosos em ver o filme do realizador que nos deu a beleza bucólica e romance mágico de Call Me By Your Name. Mas, apesar de não ser propriamente um filme de terror puro na forma como usa os sustos e o sangue para causar choque, é uma obra incrivelmente visceral onde é conjurada uma violência tortuosa para com os corpos, nomeadamente das mulheres enquanto as suas maiores armas de luta. Sem querer revelar demasiado, existe na academia uma profunda guerra de visões de futuro para a mesma e na própria idolatração da bruxa-mãe, onde muitas ousam tentar lutar contra a lei instaurada que não foge muito da imposição de ideais e abuso do poder do patriarcado.

Como se o próprio conventículo, lugar de apropriação de poder por parte das mulheres, se tivesse deixado violar por uma visão conspurcada do feminino e usado a sua força para perpetuar o mal sobre as mesmas. São aqui as próprias mulheres a incitarem a violência sobre elas mesmas, por desobediência ou manifestação de desejos próprios. Não existe espaço neste filme para homens: a única personagem masculina do filme, um médico psicólogo que tenta ajudar uma aluna desaparecida da academia, é também ele Tilda Swinton, uma das protagonistas do filme e a bailarina mais celebre da companhia. E a bruxa que luta agora contra a autoridade máxima do conventículo, a anciã e sua mentora Helena Markos, mas sem grande sucesso. Até chegar Susie.

E quem só conhece Dakota Johnson da saga 50 Sombras, irá ter uma grande surpresa neste novo golpe de asa da atriz junto de Guadagnino depois da incrível interpretação em A Bigger Splash. A sua personagem e a de Swinton, absolutamente soberba e desarmante mais uma vez neste papel duplo, promovem uma dança em que o corpo feminino é simultaneamente um promotor de liberdade e um objeto de exploração. O balanço final desta peça a dois corpos, pontuada musicalmente de forma exímia por Thom Yorke – líder do Radiohead, irá ditar o futuro do conventículo e das mulheres que dele fazem parte. Porque a bruxa-mãe, Mãe dos Suspiros, não deixará as suas filhas sofrer muito mais nas mãos de uma traidora de género.

Suspiria teve estreia em Portugal fora de competição no LEFFEST e estará em sala já esta Quinta-Feira, dia 22 de Novembro

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