A queda fedorenta

Era uma vez um gato. Um gato tão diferente de todos os outros em Portugal que durante vários anos foi acarinhado, aclamado e colocado num pedestal. E ainda bem, pois a sua irreverência e inteligência foram uma lufada de ar fresco no panorama televisivo do humor português. Através de famosos sketches aquela gataria entrou na linguagem das pessoas, no seu dia-a-dia. E com ela denunciaram quem mereceu denúncia, ridicularizaram quem se mostrou ridículo, protegeram quem precisou de proteção. Contra Marcelo, PNR ou a Igreja Católica, nada parou aquele quarteto. Foram intocáveis.

Até que surgiu uma mudança no argumento, possivelmente aquando da história dos “gins cheios de paneleirices”. De repente, a retórica alterou-se. A partir dali a palavra deixava de ter importância, deixava de ter simbolismo, era vazia, oca e apenas quem se deixava incomodar ou insultar sofreria de um tal peso. Em nome de uma absoluta liberdade de expressão, a responsabilidade passou a ser da pessoa violentada e não de quem violenta. Como já aqui foi escrito pelo Nuno Gonçalves: “A inversão da culpa é perniciosa e ajuda a fazer prevalecer os modelos injustos e discriminatórios da sociedade.”

Acontece que a palavra possui significado e a profissão de Ricardo Araújo Pereira (RAP), uma das patas deste gato, é geralmente hábil nesses jogos de poder e contrapoder. Mas mais do que o significado que as palavras têm, é a intenção que lhes damos. E é por isso que RAP – ou outra pessoa qualquer – pode efetivamente utilizar a palavra que deseje, mas se à palavra lhe tiver sido dado um significado que minora um grupo – seja ele qual for – por puro preconceito, é especialmente importante que a intenção fique clara e que esta sirva para desconstruir dogmas e clichés. Aliás, RAP já foi exímio nessa desconstrução.

E hoje em dia? O humorista tem feito duras críticas à questão trans, por exemplo. Chegou a explicar recentemente no Governo Sombra que, no caso da utilização das casas de banho de acordo com o género com o qual as pessoas se identificam, tendo duas filhas, não lhe “apetecia que um barbudo entrasse na casa de banho enquanto elas lá estão”. Acrescentou ainda que a suposta leveza dessa discussão é uma “falta ao respeito sobre o que é ser mulher.

Uma mulher de verdade?, pergunto. Tal como as palavras, os ditos e não-ditos possuem uma mensagem subliminar e, como tal, não deixa de ser válido levantar esta questão, especialmente quando o RAP tentou rasurar a discussão do direito das pessoas trans ao afirmar que, com a lei da autodeterminação de género no acesso a casas de banho, bastaria declarar que se identificava como… e parou aqui, mas esta hesitação e posterior reformulação do seu ponto de vista não deixam de ser reveladoras da sua intenção inicial. E qual o problema com tudo isto? O problema existe quando este gato parece ter perdido a empatia e aparentemente deixou de conseguir entender a violência que é alguém ver-se obrigado a usar um espaço que lhe foi imposto e a que não pertence. É entender a dor e a frustração de jovens trans que vivem esta realidade desde cedo nas suas vidas. Não perceber que as suas duas filhas estariam tão seguras agora como no passado é colocar uma venda nos olhos para chegar a um ponto. Mas este é um ponto que, ao contrário dos sketches de antigamente, não questiona aquilo que impera social e culturalmente, não desconstrói uma situação que tem um custo humano, muito pelo contrário, valida-a e dá-lhe força. Pergunto, é assim que se posiciona o novo humor fedorento?

Talvez esteja a focar-me em demasia no RAP, culpa talvez da sua maior popularidade perante o restante grupo, mas a verdade é que ele não está só no que toca a novas perspectivas humorísticas. Outra das patas felinas, José Diogo Quintela, para além das padarias e das óticas, tem espaço para opinar no Observador. E sobre o que opina Quintela (perdoem-me, mas o RAP é o único gato capaz de sustentar um acrónimo)? Bem, muito resumidamente, coloca em causa as alterações climáticas. E se isto já seria um ponto suficientemente constrangedor, a verdade é que Quintela o faz usando a mesma retórica de RAP, ou seja, atacando quem é, por regra atacado. Ou, neste caso, atacadas. Pois falamos das “feministas radicais” que pregam “contra a masculinidade tóxica”. Afinal de contas estas feministas estão a queixar-se de quê? Será da desigualdade salarial? Será do assédio? Será da violência doméstica? De que se queixam elas e por que foram chamadas num artigo sobre a negação das alterações climáticas? Porque têm piada, como é óbvio! E se já levam pancada a torto e a direito, que diferença lhes fará mais um empurrãozinho num artigo do Quintela, não é verdade?

Mas as feministas voltam a não ter descanso, desta vez chamadas pelo gato Tiago Dores. Ora, esta semana escreveu – também no Observador, imagine-se! – que “as feministas decidiram combater as mulheres que optam por dar prioridade aos filhos e à família”. Uh, não é bem isso, Dores. Mas vamos com calma. O que Joana Bento Rodrigues escreveu – nem preciso dizer onde… – foi que o “potencial feminino, matrimonial e maternal” de uma mulher são as suas “características mais belas”. Este é, sem dúvida, e talvez o Dores não tenha entendido, uma recuperação de um manuscrito datado de 1950. Dúvidas houvesse, basta ler as lindas passagens agora: uma mulher “gosta de se arranjar e de se sentir bonita”; “gosta de se sentir útil, de ser a retaguarda e de criar a estabilidade familiar, para que o marido possa ser profissionalmente bem sucedido”; e, por fim, “na maternidade, a mulher sente-se verdadeiramente realizada”. Pois, não é bem a mesma coisa do que meras feminazis histéricas a lutarem contra um peso e, em alguns casos extremos, uma imposição sobre qual a verdadeira natureza e objetivo na vida de uma mulher. É que se ainda restasse algum pingo de dúvida, o modernaço Dores teve a brilhante ideia de chamar a esta sua visão do feminismo de “machismo transgénero”. É que assim este gato despacha dois coelhos de uma só vez: é o “novo feminismo exatamente igual ao machismo, mas ao contrário”; como este feminismo é transgénero, porque faltava aqui a derradeira punchline, obviamente! E toda a gente sabe como as pessoas trans adoram ser saco de pancada, pois claro!

O único gato que parece escapar é mesmo o Miguel Góis, talvez o menos memorável do grupo, mas aquele que, pelo menos publicamente, parece não ter enveredado por estes caminhos de construção de retóricas contrárias àquelas que popularizaram o fedorento. Quem diria que restaria ele como último representante do bom-senso fedorento?

Apresentados os argumentos, sem palmas do público para ajudar à piadola semanal, é esta polarização que nos deve deixar alerta, pois se esta acontece a pessoas que mostraram sensibilidade, inteligência e poder para mudar mentalidades, influenciar campanhas políticas e fazer rir um país inteiro durante anos, o que nos trará o futuro? O que precisamos mudar? Em que falhámos? São questões que ao longo dos últimos anos, e em particular quando encontro este gato de garras de fora contra aquilo que defendeu no início, me têm ocorrido. O que mudou? Eu? Eles? Quando passámos a ser, à vista destas pessoas, o status quo? Quando nos tornámos no mainstream? Pior, quando deixámos de ser, aos seus olhos, a vítima e passámos a ser quem agride? Quem mudou quem? Quem perdeu a piada? O Pio? Miau.


Ep.186 – Renaissance: A Film by Beyoncé (hmmm, yummy, yummy, yummy, make a bummy heated) Dar Voz a esQrever: Notícias, Cultura e Opinião LGBTI 🎙🏳️‍🌈

O CENTÉSIMO OCTAGÉSIMO SEXTO episódio do Podcast Dar Voz A esQrever 🎙️🏳️‍🌈 é apresentado por nós, Pedro Carreira e Nuno Miguel Gonçalves. Antes de darmos por terminada esta temporada do podcast, não podemos ficar indiferentes ao lançamento do incrível filme concerto Renaissance. Usamos os vários momentos documentais do backstage do concerto para falar um pouco da carreira de Beyoncé, focados, claro, no último álbum, Renaissance, inspirado na cena ballroom queer de Nova Iorque e no seu tio gay Johnny que morreu com VIH/SIDA. Voltamos em janeiro para mais uma temporada, que pode ser ligeiramente diferente a nível de periodicidade. Mas mais detalhes só em 2024. Boas festas a todes! 🎄 Artigos mencionados no episódio: Beyoncé lança trailer do filme da celebrada The Renaissance World Tour Beyoncé homenageia O’Shae Sibley, homem gay assassinado por dançar a sua música numa estação de serviço Beyoncé lança remix surpresa de ‘Break My Soul’ com icónica ‘Vogue’ de Madonna Beyoncé dedica álbum Renaissance ao seu tio gay Johnny O Amor (Inclusivo) de Beyoncé O “Chamamento às Armas” de Beyoncé Jingle por Hélder Baptista 🎧 Este Podcast faz parte do movimento #LGBTPodcasters 🏳️‍🌈 Para participarem e enviar perguntas que queiram ver respondidas no podcast contactem-nos via Twitter e Instagram (@esqrever) e para o e-mail geral@esqrever.com. E nudes já agora, prometemos responder a essas com prioridade máxima. Podem deixar-nos mensagens de voz utilizando o seguinte link, aproveitem para nos fazer questões, contar-nos experiências e histórias de embalar: https://anchor.fm/esqrever/message 🗣 – Até já unicórnios  — Send in a voice message: https://podcasters.spotify.com/pod/show/esqrever/message
  1. Ep.186 – Renaissance: A Film by Beyoncé (hmmm, yummy, yummy, yummy, make a bummy heated)
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Por Pedro Carreira

Ativista pelos Direitos Humanos na ILGA Portugal e na esQrever. Opinião expressa a título individual. Instagram/Twitter/TikTok/Mastodon/Bluesky: @pedrojdoc

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