Gregory Greiten tinha 17 anos quando os padres organizaram um jogo. Era 1982 e ele estava num seminário católico para adolescentes que pretendiam tornar-se padres. Os líderes pediram a cada rapaz que escolhesse entre queimaduras em 90% do seu corpo, ficar paraplégico ou ser gay. Todos eles escolheram as queimaduras ou a paralisia. Nem um único proferiu a palavra “gay” sequer. O jogo chamava-se O Jogo da Vida.
O armário da Igreja Católica depende de uma contradição impossível. Durante anos, os líderes da igreja expulsaram membros gays, envergonharam-nos e insistiram que as “tendências homossexuais” são “desordenadas”. E, no entanto, milhares de padres da Igreja são gays. As histórias de padres gays não são contadas ao mundo exterior, sendo apenas conhecidas uns pelos outros. É um mundo de armário profundo, uma jaula dourada onde a homofobia internalizada domina e prende o ser humano numa fachada cada vez menos aparentemente imaculada.
Menos de 10 padres nos Estados Unidos ousaram sair do armário. Mas estes serão pelo menos 30% a 40% do clero católico norte-americano, segundo dezenas de estimativas de padres homossexuais e pesquisadores.
Vinte padres aceitaram falar com o The New York Times, mas quase todos eles exigiam estrita confidencialidade para falar sem medo de retaliação dos seus bispos ou superiores. Alguns foram expressamente proibidos de sair ou mesmo de falar sobre a homossexualidade. A maioria poderia perder mais do que o seu trabalho se fossem divulgados. A igreja quase sempre controla a moradia de um padre, seguro de saúde e pensão. Ele poderia perder todos os três se o seu bispo achasse a sua orientação sexual desqualificante, mesmo que ele seja fiel aos seus votos de celibato.
O ambiente para os padres gays tornou-se apenas mais perigoso. A queda de Theodore E. McCarrick, o cardeal outrora poderoso que foi exonerado no mês passado por abuso sexual de meninos e adolescentes, inflamou as acusações de que a homossexualidade é a culpada pelo ressurgimento da crise de abuso da Igreja.
Mas estudos científicos repetidamente mostram não haver ligação entre ser gay e abusar de crianças. E, no entanto, bispos proeminentes destacaram padres gays como a raiz do problema, e as organizações de direita extrema atacam o que eles chamam de “subcultura homossexual” da igreja, ou de “cabala gay”.
Até mesmo o Papa Francisco se tornou mais crítico nos últimos meses, ao chamar a homossexualidade de “moda”, recomendar que os homens com “essa tendência profunda” não sejam aceites para o ministério e os padres gays sejam “perfeitamente responsáveis, tentando nunca criar escândalo”.
O Papa Francisco foi inicialmente uma das imagens de mudança da Igreja Católica e apenas há alguns anos essa mudança foi quase inimaginável quando proferiu a sua pergunta revolucionária: “Quem sou eu para julgar?“. Em 2013, tentou abrir assim a porta do armário dentro da sua organização. Mas se a porta do armário abriu um pouco, a crise dos abusos sexuais ameaça agora fechá-la mais uma vez. O bode expiatório generalizado levou muitos sacerdotes novamente para o fundo do armário.
“A grande maioria dos padres gays não está segura“, disse o padre Bob Bussen, um padre do Utah, que realizou uma missa para o para a comunidade LGBT há 12 anos. “A vida no armário é pior do que o bode expiatório“, disse ele. “Não é um armário. É uma jaula.”
“Não poderia ter uma amizade especial com um homem, porque podia acabar por me tornar num homossexual“, explicou um padre sobre as regras. “Da mesma forma, não poderia ter uma amizade com uma mulher, porque podia acabar por me apaixonar, e ambos são contra o celibato. Com quem podemos então ter um relacionamento humano saudável? ”
Mesmo antes de um padre saber que ele é gay, ele conhece o armário. O código é ensinado cedo, muitas vezes no seminário. “Nunca dois, sempre três. Movam-se em trios, nunca em pares. Não vamos andar sozinhos juntos, não vamos ao cinema como par.” Os superiores advertiram durante anos: qualquer amizade masculina é muito perigosa, poder-se-ia transformar em algo sexual ou poder-se-ia transformar no que eles chamavam de “amizade particular”.
Hoje, o treino para o sacerdócio nos Estados Unidos geralmente começa dentro ou depois da faculdade. Mas até 1980, a igreja recrutava adolescentes ainda no auge da puberdade. Para muitos dos padres e bispos de hoje com mais de 50 anos, esse ambiente limitou o desenvolvimento sexual saudável. Os padres não podem casar-se, como tal a sua sexualidade desde o começo focava-se na abstinência e na obediência.
Um padre de uma diocese rural disse que as regras o lembraram de como a sua escola primária forçou estudantes canhotos a escrever com a mão direita. “Você pode ser ensinado a agir corretamente para sobreviver“, explicou. “Ainda me lembro de ver um seminarista sair do quarto de um outro às 5 da manhã e pensar, que bom, eles conversaram a noite toda“, disse o mesmo padre. “Eu era tão ingénuo!“
Sacerdotes na América tendem a sair do armário para si mesmos numa idade muito mais avançada do que a média da restante população gay, aos 15 anos. Muitos padres gays foram puxados para a negação e a confusão, finalmente ganhando consistência da sua identidade apenas aos 30 ou 40 anos.
O padre Greiten tinha 24 anos quando percebeu que era gay e ponderou saltar da janela do seu dormitório. Não pulou, mas confidenciou o seu desespero a um colega seu. O seu amigo confessou-lhe ser também ele gay. Foi uma revelação: havia outras pessoas a estudar sacerdócio que eram gays, mas ninguém o assumia.
Ele procurou um ex-professor de seminário que achava ser também gay. “Haverá um tempo na tua vida em que vais olhar para trás e vais amar-te a ti mesmo por seres gay“, disse-lhe. “Eu pensei: ‘Esse homem deve ser totalmente insano’”. Mas ele descobriu a estranha ironia do armário católico – não é nada secreto. “É como um armário aberto“, disse o padre Greiten. “Apenas quando falamos dele em público é que se torna um problema.“
Todos os sacerdotes devem lutar com seus votos de celibato e os poucos padres que estão publicamente expostos deixam claro que são castos. Ainda assim, muitos padres disseram que fizeram sexo com outros homens para explorar sua identidade sexual. Alguns assistiram a pornografia para ver como é que dois homens fazem sexo. Como resultado do celibato, muitos acabaram por encontrar mais angústia do que prazer.
Um padre fez sexo pela primeira vez aos 62 anos com um homem que conheceu online. O relacionamento foi descoberto e relatado ao seu bispo e o padre não teve relações sexuais desde então. Outro padre, quando questionado se já tinha tido um parceiro ou namorado, não entendeu sequer o conceito para si mesmo. Ainda assim, fez uma pausa antes de mencionar um amigo muito especial. “Apaixonei-me várias vezes por homens“. “Sabia, no entanto e desde o começo, que não ia durar.“
Embora aberto, o armário significa que muitos sacerdotes têm mantido as mais dolorosas histórias entre si por décadas: um seminarista suicidou-se quando cartas de um bar gay foram encontradas no seu quarto; padres amigos que morreram de VIH/SIDA nas décadas de 1980 e 1990. Existem inúmeras tragédias que estes padres sofrem solitariamente.
Houve então uma reação. Foram editados livros como o inovador “Construindo uma Ponte”, do Padre James Martin, sobre a relação entre a Igreja Católica e as comunidades LGBT. Alguns assinaram petições contra programas de terapia de conversão patrocinados pela igreja, ou encontraram-se em retiros, depois de descobrir como ocultá-los dos seus calendários da igreja. Ocasionalmente, um padre pode até tirar o colarinho e oferecer-se para abençoar não oficialmente o casamento de um casal do mesmo sexo. Alguns podem chamar isso de rebelião. Mas “não é uma cabala“, disse um padre. “É um grupo de apoio.“
Há pouco mais de um ano, depois de se encontrar com um grupo de padres gays, o Padre Greiten decidiu que era hora de acabar com seu silêncio. Na missa de domingo, durante o Advento, ele disse à sua paróquia que era gay e celibatário. As pessoas levantaram-se em aplausos. A sua história tornou-se viral. Um padre de 90 anos chamou-o para dizer que havia vivido toda a sua vida no armário e ansiava que o futuro fosse diferente. Uma mulher escreveu do Mississippi pedindo que ele se mudasse para o sul para ser seu padre.
Para alguns líderes da igreja, esta manifestação de apoio pode ter sido ainda mais ameaçadora do que a sua identidade sexual. Na sua visão, o Padre Greiten havia cometido o pecado fundamental: ele abriu a porta ao debate. O seu arcebispo, Jerome E. Listecki, divulgou um comunicado onde se lia que desejava que o padre Greiten não tivesse ido a público sobre a sua identidade. Cartas do arcebispo chamaram-no de “satânico“, “porco gay” e um “monstro” que sodomizava crianças.
A ideia de que os padres gays são responsáveis pelo abuso sexual infantil continua a ser uma crença persistente, especialmente em muitos círculos católicos conservadores. Durante anos, os líderes da igreja ficaram profundamente confusos sobre a relação entre a homossexualidade e o abuso sexual. Com cada nova revelação de abuso, os fios emaranhados da cultura sexual da igreja tornam-se ainda mais impossíveis de resolver.
Estudo após estudo mostra que a homossexualidade não está relacionada com o abuso sexual infantil. Isso também é verdade para os padres, de acordo com um famoso estudo realizado pela Faculdade John Jay de Justiça Criminal, na sequência de revelações em 2002 sobre abuso sexual infantil na igreja. A pesquisa de John Jay, que os líderes da igreja encomendaram, descobriu que a experiência sexual entre pessoas do mesmo sexo não tornava os padres mais propensos a abusar de menores, e que quatro em cada cinco pessoas que disseram que eram vítimas dentro da Igreja católica eram do sexo masculino. Os pesquisadores não encontraram uma causa única para esse abuso, mas identificaram que o amplo acesso dos padres abusivos aos meninos e adolescentes foi fundamental para a escolha das vítimas. Ao contrário do que alguns grupos conservadores dentro e fora da igreja queriam fazer crer, o abuso de menores não estava relacionado com a orientação sexual dos abusadores, mas tratava-se sim numa questão de poder perante as vítimas.
Essa percepção persiste hoje em importantes seminários católicos. No maior seminário dos Estados Unidos, o Mundelein Seminary, poucos falam em identidade sexual. Desde o verão passado, quando McCarrick foi denunciado por abusar de homens jovens, estudantes foram treinados em regras sobre o celibato e os males da masturbação e da pornografia. “Colegas de classe dirão: ‘Não admitam gays'”, disse um aluno. “A atitude deles é que são padres gays que infligem abuso a jovens.”
A noção preconceituosa e desinformada de que uma certa identidade sexual leva a um comportamento abusivo desmoralizou os padres gays por décadas. Dias depois de um homem se aposentar, ele ainda não conseguia livrar-se do que seu arcebispo na década de 1970 disse a todos os novos padres para suas primeiras tarefas paroquiais. “Ele disse: ‘Eu nunca quero que me liguem para relatar sobre o seu pastor, a menos que ele seja um homossexual ou um alcoólico’. Eu nem sabia o que ele queria dizer quando falava de homossexuais, porque éramos todos homossexuais. Ele quis dizer na realidade predador, como um predador em série.”
Os padres gays estão a questionar-se se o seu sacrifício vale o custo pessoal. “Vou deixar o sacerdócio porque estou farto dessa acusação?“, perguntou o padre Michael Shanahan, um padre de Chicago que saiu do armário há três anos. “Tornar-me mais distante dos paroquianos? Esconder-me? Tornar-me endurecido e velho?”
Um grupo de padres gays da Holanda recentemente deu um passo ousado e escreveu ao Papa Francisco pedindo que ele permitisse que homens gays e celibatários fossem ordenados. Já o Padre Greiten gostaria de poder conversar com o próprio Papa Francisco: “Ouça a minha história de como a igreja me traumatizou por ser um homem gay. Não se trata apenas da questão dos abusos sexuais. Eles são sexualmente traumatizantes e ferem várias gerações. Temos que nos levantar e dizer não ao abuso sexual, não à traumatização sexual, não aos ferimentos sexuais. Temos que acertar quando se trata de sexualidade.”
O Padre Greiten prepara-se para a sua 15ª viagem às Honduras que fará com pessoal médico e onde levará medicamentos. “E se todos os sacerdotes tivessem realmente permissão para viver a sua vida livre, aberta e honestamente?“, perguntou ele. “É esse o meu sonho.“
Fonte: New York Times.
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