
Yorgos Lanthimos começa a ser um nome sobejamente conhecido pela sua visão absolutamente arrojada e pérfida das histórias que conta. Dogtooth já tinha capturado a atenção das críticas mas ganhou notoriedade com A Lagosta, um romance numa distopia onde as relações monogâmicas eram imperativas e a falha no seu cumprimento levava à transformação dos culpados em animais. Ganhou o Prémio do Júri em Cannes e o seu filme seguinte, O Sacrifício de Um Cervo Sagrado, uma história de um cirurgião que vê a sua família começar a perecer de uma estranha doença depois de travar amizade com o filho de um dos seus pacientes falecidos, também foi galardoado com o prémio de Melhor Argumento no mesmo festival.
Portanto, quando se sabe que Lanthimos vai fazer um filme de época, A Favorita, baseado na história da estranha e amaldiçoada Rainha Anne de Inglaterra, logo se soube que não seria um drama real tradicional. A Rainha Anne tomou posse numa época tumultuosa na Inglaterra em que duas facções políticas, os Tories e os Whigs, lutavam freneticamente pelo poder. Anne era uma mulher que muitos viam como amaldiçoada, tendo tido dezassete gravidezes das quais resultaram muitos nados mortos e crianças que não sobreviveram muitos anos depois do seu nascimento, tendo acabado sem herdeiros. Era também minada por ataques de gota que a deixavam prostrada numa cadeira de rodas ou numa cama e problemas do foro psiquiátrico que a tornaram infame. Anne confiava implicitamente em Sarah Churchill, Duquesa de Marlborough, que tomava o seu lugar em muitas reuniões políticas e sessões no Parlamento devido às suas enfermidades. Pelo menos até uma prima de Churchill, Abigail Hill, se imiscuir na corte, primeiramente como criada até se tornar aia da Rainha.
Aqui começa a entrar a especulação e, na realidade, Lanthimos nunca pretendeu que esta história fosse totalmente representativa da mesma e do que se passou durante o reinado tardio da Rainha Anne, nomeadamente durante a guerra com França. Estava sim interessado na relação entre estas três mulheres, totalmente diferentes em personalidade e nos propósitos para o poder que foram ganhando, numa época em que tudo era, irremediavelmente, dominado por homens. A homossexualidade de Anne ou Sarah nunca foram confirmadas mas aqui Lanthimos retrata-as, em simultâneo, de formas extremamente ternas e cruéis, numa relação íntima de co-dependência física e emocional. Mas tudo funcionava até chegar Abigail, uma rapariga de origens nobres caída em desgraça, que foi lutando pelos afetos da rainha para subir na corte, o que causou uma cisão entre Anne e Sarah.
Dizer que este é um romance lésbico pode ser extremamente redutor. Lanthimos utiliza este triângulo amoroso para demonstrar as armadilhas do amor e da paixão enquadradas numa época em que tudo isto era proibido e ocultado pela luz ténue de velas. Tudo imiscuído numa luta de pressões políticas externas que ameaçavam o delicado balanço do poder destas duas mulheres, destinadas a falhar na sua parceria. Mas é uma que tem tanto de doentio quanto de enternecedor, com Sarah claramente a tomar o papel de cuidadora da mulher que tanto ama e que no entanto tão difícil parece de amar, com as suas doenças a deixarem-na pouco mais que uma criança debilitada. Mas a lealdade de Sarah parece inabalável. Até, claro, Abigail. E Lanthimos, curiosamente no primeiro filme cujo argumento não é por ele assinado, leva-nos nesta viagem de forma exímia e com uma mão apertada na nossa garganta e uma série de murros no estômago, como só ele parece saber disferir no cinema atual. Visualmente soberbo e faustoso, tecnicamente irrepreensível e desavergonhadamente cruel na forma como mostra as doentias falhas da nossa Humanidade e dos sentimentos em que nos fingimos resguardar.
Olivia Colman foi a vencedora surpresa do Óscar de Melhor Atriz Principal, passando à frente d’as favoritas’ Lady Gaga e Glenn Close. Mas não é difícil perceber porquê. A humanidade que Colman traz a uma personagem tão débil e repelente é inebriante, onde os laivos de comédia negra em relação ao seu estado atual muitas vezes são sobrepostos por uma vida de tragédia digna da Grécia Antiga. Também nomeadas estavam Rachel Weisz, que já tinha trabalhado com Lanthimos em A Lagosta, e Emma Stone, nos papéis de Sarah e Abigail para Melhor Atriz Secundária, mas não nos iludamos, todas as três atrizes dividem irmamente o protagonismo do filme: Stone encontra aqui claramente o seu melhor papel depois de Birdman enquanto a vilã sem escrúpulos que adoramos odiar e Weisz é grandíloqua na forma como detém um poder silencioso mas implacável. Atrevo-me a dizer que o Óscar devia ter sido dado em ex-aequo às três atrizes mas a Academia jamais o permitiria.
É um filme imperdível e que não terá rival dentro deste género cinematográfico, uma espécie de novo Barry Lyndon. O realizador mais subversivo do cinema atual, um trio de atrizes inesquecível e uma história de amor gargantuana a três que decerto não deixará ninguém indiferente. Nem que seja pela forma como mistura um ataque de gosta e um orgasmo clitoriano. E coelhos. E tudo o resto.
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