#culturaqueer_4 À conversa com um drag king

#culturaqueer é uma proposta de rubrica mensal com reflexões críticas sobre objetos artísticos que interliga cultura visual e questões de género, sexualidade e feminismo. Escrevo com a intenção não de tornar as minhas palavras uma verdade absoluta, mas de proporcionar um diálogo saudável entre membros da comunidade LGBTQIA+ e seus aliados, funcionando também como uma plataforma de aprendizagem pessoal. Por isso, convido-vos a enviarem as vossas propostas de análise, sejam exposições, obras de arte, obras literárias, música, teatro ou filmes – sharing is caring! – ou a partilharem as vossas opiniões. Começamos?

#culturaqueer_4: À conversa com um drag king

Este mês, a #culturaqueer chegou mais tarde – mas por uma boa razão, que descobrirão daqui a exatamente uma semana – e num formato diferente. A verdade, é que acho que a reflexão sobre a Queen Christina me fez pensar em toda a cultura de cross-dressing que já existe há centenas de anos, contudo deixando ainda criaturas especadas quais virgens ofendidas com o vislumbre de uma drag queen. Por isso, decidi que fazer algo sobre drag seria divertido. Mais particularmente, decidi entrevistar um grande drag king, com reconhecimento internacional, o adorável Adam All, que eu tive o enorme privilégio de ver ao vivo quando vivia em Londres.

Seria de esperar que uma pessoa com grandes projetos na cena drag em Londres não estivesse muito disponível. Mas o Adam não é grandioso. A pessoa que eu entrevistei era humilde, tímida, divertida, sensível e inteligente. Sem querer canonizar ninguém, eu sou muito mais diva que ele e raramente uso maquilhagem e/ou vestuário brilhante e glamoroso e/ou perucas incríveis. Resumindo, ele manifestou-se prontamente disponível e o que seria uma entrevista potencialmente para meia hora, transformou-se numa conversa de um pouco mais que uma hora, sobre temas tão diversos como o crescimento do drag enquanto arte performativa válida, até reconhecimento de identidades de género e sexualidades não-normativas.

Eu tinha preparado uma série de perguntas. Estava nervosa. Ele pediu-me para não utilizarmos o vídeo – não estava em drag, iria ter um show mais tarde nessa noite e ainda não estava preparado. Certo, posso relaxar e roer as unhas enquanto falamos sobre assuntos sérios ou escavar o nariz à procura daquele macaco básico, pensei.

Ligação Skype feita, apresentações concluídas e infeliz constatação de que ele parecia a minha ex a falar, lá começámos.

Mafalda (Eu, doravante M) – Podes começar por explicar-me um pouco quem é o Adam All? A personalidade dx Jen muda quando é Adam All?

Adam All (Drag King incrível, doravante A) – O Adam All é um drag king que mostra masculinidade sem comportamentos tipicamente masculinos que são tóxicos. É assim uma espécie de “pai”. Eu trabalho como Adam All em todo o Reino Unido, mas vivo em Londres. Na verdade, há muito do Adam que se baseia em mim, mas ele tem, sem dúvida, a sua própria personalidade. Passei muito tempo a construí-lo enquanto um ser real que vive e respira como nós, tem a sua própria história de vida. Tem ainda várias influências e preocupações diferentes. É um outro personagem que eu encontrei.

M – Então como descreverias a personalidade do Adam? Mencionaste a sua história de vida…

A – O Adam, tal como eu, adora sol e dançar, mas ele é um pouco mais livre para se expressar, é mais confiante, não se leva tão a sério… tem muitos traços femininos, apesar da pressão para ser masculino. Os traços femininos “escapam-se” ocasionalmente. Ele sabe que não é suposto ser assim, mas na altura ele não quer saber. O Adam é mais flamboyant. É um pouco naïve também e não muito astuto.

M – Que idade tinhas quando começaste a fazer drag?

A – A primeira vez que vesti drag de forma consciente tinha 17, mas não para fazer nenhuma performance, foi mais numa onda de ir para uma festa e divertir-me com os fatos. Eu saí do armário muito cedo, quando tinha 14 anos. Estava rodeadx de pessoas queer, por isso era um ambiente bastante confortável para uma pessoa se descobrir. Não é que existissem pessoas a fazer o mesmo. Se calhar foi um desafio, eu sempre fui uma pessoa mais solitária, mais reclusa e, possivelmente, se tivesse visto pessoas a fazer drag, não teria sido tão aliciante para mim. Portanto, aos 17 experimentei e, mais tarde, em Hull, na universidade, estava suficiente perto de Manchester onde havia muitas performances a acontecer. Eu ia frequentemente aos bares gay de lá vestido em drag. Quando saí da universidade, demorei cerca de 4 ou 5 anos para subir a um palco. Desenvolvi a minha personagem e em 2008 tive a minha oportunidade, aos 24 anos. Nunca mais olhei para trás.

M – Saíste então do armário aos 14. Quando é que falaste com os teus pais sobre o drag?

A – Os meus pais não tinham este mundo quando cresceram, para os pais deles era proibido ser gay… Eles descobriram que eu era gay, em vez de ser eu a dizer-lhes e não ficaram muito felizes. Chateámo-nos nessa altura, mas quem não o faz quando tem 14 anos? De qualquer modo, não falámos muito durante 4, talvez 5 anos. Vivia com eles , mas recolhia-me. Eu acho que eles não percebiam, que achavam que a culpa era deles ou que estava a tentar ser rebelde. Mais tarde, descobri que eles estavam, na verdade, assustados com o meu futuro. Reconciliámo-nos antes da universidade. E existe ainda a questão da minha identidade de género, que não é feminina nem masculina, que é nova para eles e para mim também. É uma viagem estranha na qual eu os forcei a participar. Quando comecei a atuar, eles não perceberam e perguntavam-me “para quê?”. Depois foram ver um show, há 5 ou 6 anos, e divertiram-se imenso. Hoje em dia apoiam-me muito, são os meus maiores fãs e eu amo-os do fundo do coração.

M – Mencionaste a descoberta da tua identidade não-binária. Achas que o drag, no geral, permite às pessoas explorarem a sua própria identidade de género?

A – Sem dúvida. O drag força-te a pressionares os limites do que é o género e a desmistificar ideias erradas sobre identidade de género. Força-te a pensar no teu corpo, como te mexes e como te sentes na tua pele. Começas a aperceber-te das pressões sociais para te conformares, para que te tornes mais “legível” enquanto ser masculino ou feminino. Através do drag, percebes até que ponto este comportamento é restritivo e é ridículo que as pessoas tenham o direito de te definir meramente olhando para ti. Aliás, a primeira questão colocada é sempre “de que género és?” e eles respondem a essa questão ao olhar para o teu corpo e a forçarem em ti uma identidade. Quando não consegues determinar pela observação, como acontece no meu caso, as pessoas ficam só a pasmar. É extremamente desconfortável.

M – Mudando agora um pouco de assunto… A primeira vez que te vi foi no She Bar em Soho em 2016 com a Apple Derrieres. Como está a cena em Londres agora?

A – As coisas mudaram imenso. Temos um concurso de kings, o Man Up, que este ano teve mais de 100 concorrentes e 16 finalistas. Na BoiBox, continuamos a atrair kings da Austrália, EUA e Canadá. Fazemos agora a BoiBox no The Glory, mas continuamos a fazer karaoke no She. Existe um certo conforto, um certo calor muito familiar, é uma ótima atmosfera. Também estou mais envolvido no London Pride. Vão haver outros projetos interessantes este ano. O reconhecimento da cena drag está a melhorar a olhos vistos. Ainda temos muito que trabalhar enquanto comunidade, porque ainda vivemos numa sociedade tendenciosa e essas mesmas tendências são injustas para um determinado grupo. Mas é divertido cooperar com pessoas no sentido de eliminar preconceitos. Toda a gente se está a esforçar imenso, não poderia estar mais orgulhosx!

M – E no resto do Reino Unido?

A – Acho que também está a acontecer, mas em pequenas doses. Em termos de drag queens, o Reino Unido tem a sua história… Os drag kings têm que provar que conseguem encher bares antes que os gerentes os contratem. Às vezes torna-se um bocado competitivo, o que não é bom. Mas no geral, toda a gente se apoia.

M – Sim, porque no RuPaul’s Drag Race (RPDR) vemos que eles conseguem ser mesmo maus… e já somos um grupo minoritário, é ridículo lutarmos contra nós próprios.

A – Sim, ainda há pessoas que dizem “Eu apoio os kings, mas nunca vi nenhum bom”, “Todos os kings são um bocado maus, certo?” ou “Eles só começaram agora, tenho que lhes dar mais 2 ou 3 anos para amadurecer”. Comentários condescendentes e falsos, por quem não sabe o que está por trás de um drag king. Aliás, a história de pessoas designadas femininas à nascença (afab) é tão raramente contada que as pessoas nem se apercebem de qual poderá ser o nosso ângulo.

M – Porque é que achas que existe essa diferença entre queens e kings?

A – Objetificação, sem dúvida. Dizer que as mulheres não têm piada. Temos que ultrapassar todos esses preconceitos. Às vezes penso que está a ficar pior, que as pessoas afab estão a ser mais marginalizadas. Mesmo a indústria da noite gay exclui pessoas afab e se vamos a um bar normal acabamos por levar com masculinidade tóxica, o que pode ser muito intimidante. Só há, neste momento, um bar lésbico em Londres, quando dantes existiam 12 ou 14. Além disso, se és uma pessoa designada masculina à nascença (amab) com traços femininos, és celebrada; uma pessoa afab com traços masculinos, não o é.

M – Sem dúvida. Próxima pergunta: não posso deixar de falar novamente no RPDR. Levou o drag a um público mainstream. Que me dizes das críticas que fazem, particularmente dirigidas ao facto de que ele apenas deixa entrar pessoas amab no programa?

A – Irrita-me, mas quero ver de uma perspetiva mais geral… Se tornarmos a discussão sobre queens vs. pessoas trans, será complicado. Contudo é uma boa plataforma, temos que entender que se forçarmos demasiado poderemos perder tudo, especialmente agora nos EUA, que as coisas não estão famosas para pessoas LGBTQIA+. Talvez baby steps seja o ideal. Seria interessante haver algo só para drag kings. Mas ainda precisamos de passar a barreira da própria comunidade, antes de chegar à televisão…

M – Concordo contigo. Gostava de saber quem são os teus ídolos drag e se tens família drag?

A – Não tenho pai. Tive mãe, mas estava muito focada na carreira dela. Tenho muitos filhos. Na verdade, qualquer pessoa que me queira pedir ajuda e eu esteja disponível, não a recusarei; se me quiserem chamar pai é fofo. Tenho muitos irmãos que admiro e respeito. Mas em termos de apoio emocional, psicológico e até físico, a minha família é a minha mulher, a Apple Derrieres. Ela é a melhor parceira/agente que alguém pode imaginar. Em termos de ídolos, sempre adorei a Lily Savage. Sou fã do Landon Cider e do Spikey Van Dikey. Pessoas daqui que eram importantes nos anos 80 e 90 foram grandes influências. A Diane Torr que, infelizmente, já não se encontra entre nós, foi muito importante para mim. Ela falou com uma pessoa que conseguiu o meu primeiro show e que mudou a minha vida. Tive muitas pessoas da comunidade afab a tomar conta de mim, tive muita sorte.

M – Ok… Últimos comentários? Talvez dicas para futuros drag kings?

A – Vejam o programa das BoiBox, toda a gente com quem trabalhamos é fenomenal, se procuram inspiração. Eu diria ainda para serem a mudança que querem ver acontecer e se acharem que em algum lugar as pessoas não estão a ser representadas ou que ninguém da comunidade se encontra a fazê-lo, lutem pelo reconhecimento delas… ou investiguem melhor, talvez fiquem surpreendidxs.

Não querendo enviesar a opinião das pessoas sobre o Adam, para mim ele já ganhou. Quem alinha numa campanha para o trazer ao Arraial do próximo ano? #BringAdamAlltoPride2020

Devo dizer também que cortei bastante texto e uma grande discussão sobre identidades de género não-binárias, já agora. Por isso, se quiserem ler mais sobre o Adam All, falem comigo; diva mas não tanto.

Termino, dedicando este artigo à fantástica Sara Rodríguez aka Kala, fundadora do Colectivo Drag King em Espanha, sobre o qual também se deverão informar, caso a vossa onda seja mesmo a cena drag. Love you chicx.


Deixa uma resposta