Os esqueletos dos ‘The Chemical Brothers’

Decorria o longínquo ano de 1999 — já passaram 20 anos e, aparentemente, ninguém deu conta —, a saga Matrix revolucionava o cinema com os seus efeitos especiais e, no pequeno ecrã, quando a MTV passava videoclipes a toda a hora, houve um vídeo que, também pelos efeitos especiais, me chamou a atenção: o espantoso Hey Boy Hey Girl, dos The Chemical Brothers.

Nele seguimos uma rapariga interessada – quiçá obcecada – por ossos e esqueletos de animais e humanos. Esta estranha atração leva-a a ser bullied por colegas. Curioso que, na altura, nunca tinha ouvido falar sequer na expressão bullying. Ela era gozada, achincalhada, perseguida. Precisamente quando, ao correr atrás de um colega que a ridicularizava, tem uma queda em que parte o pulso e, mais tarde, fica, pois, especada a observar longamente a radiografia que fez.

Eis que acontece um salto temporal e vemos a rapariga, já mulher, na casa de banho de uma barulhenta discoteca. Num dos compartimentos, vemos dois esqueletos claramente a fornicar. A primeira vez que vi a cena não me apercebi de que, instantes antes, víamos de relance um homem e uma mulher, mas nem nas revisões seguintes isso me tirou a ideia de que aqueles esqueletos podiam, na realidade, ser de qualquer género. Apesar das expectativas e pressupostos, sim, aqueles dois esqueletos eram, essencialmente, iguais. E isso causou alguma reverberação dentro daquela versão ainda adolescente de mim próprio. O que poderia significar aquilo?

O significado dessa catártica sensação confirma-se, aliás, no momento orgásmico da canção e do vídeo, quando todas as pessoas dentro da discoteca se transformam em esqueletos, esqueletos dançantes, livres nos movimentos, livres da sua condição, da pele, dos músculos, dos órgãos, sexo incluído. E isso, de alguma forma, libertava-me um pouco sempre que via aquele vídeo.

E se esta metáfora pode ter inúmeras leituras, no campo do género a própria letra da canção transgride o que o título parece induzir. Não é um rapaz (boy), nem uma rapariga (girl), mas sim vários rapazes (boys) e várias raparigas (girls) que são chamados e chamadas a dançar livremente. E, na visão daquela rapariga, também a nossa, é isso que a música pede: que dancemos livres. Porque, com o passar do tempo, a restar alguma coisa de nós, restarão apenas os esqueletos. Deixemo-los ser. Livres.

Nota: Texto revisto pela Ana Teresa.


Por Pedro Carreira

Ativista pelos Direitos Humanos na ILGA Portugal e na esQrever. Opinião expressa a título individual. Instagram/Twitter/TikTok/Mastodon/Bluesky: @pedrojdoc

3 comentários

  1. aquaze – Alguns livros ficcionais publicados, o último dos quais, "Reencontro", em 2009. A viver em Lisboa e escrevendo ora centradamente ora dispersamente.
    aquaze diz:

    Curioso o vídeo, que desconhecia, mas a letra da canção é sumária e nada conta da história que o vídeo conta.

    1. Pedro Carreira – Portugal – Ativista pelos Direitos Humanos na ILGA Portugal e na esQrever. Opinião expressa a título individual. Instagram/Twitter/TikTok/Mastodon/Bluesky: @pedrojdoc
      Pedro Carreira diz:

      Sim, o vídeo é que conta a história ‘ao som’ da música 🙂

  2. a letra é a base do clipe e da musica. É a partir do chamado que faz aos garotos e garotas com um superstar Dj que se inicia a diversao. Nao diz no sentido filosofico realmente nada. Mas tem tudo a ver com o clipe sim !

Deixa uma respostaCancel reply

Exit mobile version
%%footer%%