Dádiva de Sangue: Com reservas em baixo, homens gay continuam a ser impedidos de doar

Parece um contrassenso, mas, num período em que as reservas dos grupos sanguíneos A e O continuam baixas e são feitas campanhas para que as pessoas doem sangue, homens gay e bissexuais continuam a ser impedidos de o fazer, mesmo sem terem comportamentos de risco.

Esta é uma novela com vários anos, de avanços e recuos na forma como homens gay e bissexuais são tratados no momento em que vão fazer a sua doação de sangue. A verdade é que a discriminação persiste nos dias de hoje, denunciámos, aliás, um desses casos há um ano.

Após atualizações às normas da Direção Geral de Saúde, estamos num ponto em que é aguardado um estudo sobre período de abstinência e cujas conclusões deverão ser apresentadas até ao final de junho. A decisão de aceitar as dádivas destes homens estará, portanto, sujeita à “discricionariedade” de profissionais de saúde.

O estudo chama-se “Comportamentos de Risco com Impacte na Segurança do Sangue e na Gestão de Dadores” e tem como objetivo “avaliar o impacto da norma 09/2016, revista em fevereiro de 2017, no risco residual infecioso por VIH” e “projetar o risco residual infecioso por VIH em diferentes cenários de suspensão da dádiva de sangue, para homens que fazem sexo com outros homens, em função do tempo desde a última relação sexual (12 meses, seis meses e três meses)”. Ou seja, poderá estar em causa um regresso da referência a um período de abstinência sexual.

Em declarações ao Expresso, Marta Ramos, diretora executiva da Associação ILGA Portugal, explicou que tem recebido denúncias de pessoas que se identificam como homens gay ou bissexuais e cuja dádiva foi recusada. Nestes casos, diz, “nem se chega a apurar a questão dos comportamentos de risco“, rematando que a associação não vai “compactuar com um sistema que negue a igual dignidade de dadores de sangue com base na identidade“.

Os comportamentos de risco são precisamente o foco da sua posição, dado que “uma pessoa que faça sexo regular com vários parceiros e não use preservativo fica automaticamente excluída por um período de tempo“, mas critica as várias mudanças na norma que acabaram por gerar “confusão” e deixar a decisão de aceitar as dádivas sujeitas aos “preconceitos” e sensibilidades de profissionais de saúde.

Ficam assim pelo caminho “dádivas muito benéficas” e, para além disso, reforça Marta Ramos, não se está a “educar pessoas para comportamentos sexuais positivos e para travar o HIV/Sida”, mas sim a “contribuir sistematicamente para estigmatizar grupos da sociedade”.

Atualização 26 janeiro 2021:

A ILGA Portugal divulgou que continua a receber denúncias de discriminação na dádiva de sangue e apela à clarificação dos critérios:

Com as notícias sobre as baixas reservas de sangue em Portugal, (re)surgiram apelos às dádivas. Com as tentativas de doação, aumentaram as denúncias de discriminação, más práticas e exclusão de pessoas dadoras. 

Depois de anos de trabalho de consciencialização para a importância de se centrar os critérios de doação nos comportamentos de risco, e não nos “grupos de risco” baseados em preceitos altamente discriminatórios, os homens gay ou bissexuais continuam a não poder doar sangue. 

A ILGA Portugal continua a registar denúncias e atos discriminatórios. O preconceito revela-se destas formas: basta a pessoa indicar a sua orientação sexual (não heteronormativa) para que o processo termine; também é dito aos homens gays e bissexuais que precisam de um ano de abstinência para poderem ser elegíveis; não raras vezes, estas pessoas descobrem que foram excluídas de forma permanente da lista de dadores.

Existiu uma norma que parecia abolir restrições de dadores com critérios discriminatórios e homofóbicos. Mas tudo voltou atrás, sem critérios claros, com fiscalização parca, e com a continuada negligência em relação à formação e sensibilização de profissionais para a não-discriminação.

A ILGA Portugal tem reiterado a importância da clarificação da norma em vigor, dos critérios de dadores, da abolição de más práticas e da necessidade de formação de profissionais de saúde com as diversas tutelas e organismos públicos competentes. 
Em 2019 foi constituída uma Comissão de Acompanhamento do estudo “Comportamentos de risco com impacte na Segurança do Sangue e na Gestão de Dadores: Critérios de Inclusão e Exclusão de Dadores por Comportamento Sexual” e a Associação foi convidada a integrar e acompanhar estes trabalhos. 

Infelizmente, a pandemia interrompeu a Comissão, mas a Saúde e os Direitos Humanos não estão nem podem estar suspensos. 

Apelamos a que todas as tentativas de doação sem sucesso sejam denunciadas ao IPST e à Provedoria de Justiça e reafirmamos o nosso compromisso para a abolição de mais esta barreira discriminatória e injustificada e apelamos aos partidos representados na AR que questionem e pressionem o Governo nesse sentido.


As dádivas de sangue estiveram em destaque no Podcast Dar Voz a esQrever 🎙🏳️‍🌈, oiçam: