Começo assim. Não se apoquentem, ó poderosos, ó patrões, ó chefes, ó gente importante: isto dói. Já sabemos, já vos conhecemos, já levámos com o vosso poder nas trombas muitas vezes, mas dói sempre. O fim‑de‑semana inteiro a ouvir-vos gemer e lacrimejar, queixarem-se de que vos obrigamos a aprovar leis à força[1], e que não vos deixamos celebrar Polanski à vontade e vos estragamos a festa, mas, para além dos vossos lamentos, não se preocupem: ouvimos-vos regozijar de ser os verdadeiros patrões, os cabecilhas, e a mensagem é clara: não estão a contar deixar passar esta coisa do consentimento. Onde estaria o gozo de tantos dominantes se fosse preciso pedir licença aos dominados? E não serei decerto a única a ter vontade de chorar depois da vossa bela demonstração de força, certamente não a única a sentir‑me conspurcada com o espetáculo da vossa orgia de impunidades.
Nada há de surpreendente em que a academia dos Césars eleja Roman Polanski como melhor realizador de 2020. É grotesco, é insultuoso, mas não é surpreendente. Quando dás um subsídio de vinte e cinco milhões a um tipo para que ele faça um telefilme, a mensagem está no subsídio. Se a luta contra o ressurgimento do antissemitismo interessasse o cinema francês, isso ver‑se‑ia. Pelo contrário, a voz dos oprimidos que verbalizam o seu calvário, já percebemos, chateia-vos. Portanto, quando ouviram falar dessa subtil comparação entre a problemática de um cineasta vexado por uma centena de feministas em frente a três salas de cinema e Dreyfus, vítima do antissemitismo francês do fim do século passado [XIX], aproveitaram a ocasião. Vinte e cinco milhões pelo paralelismo. Soberbo. Aplaudimos os investidores porque, para juntar tal soma, foi preciso que toda a gente fosse conivente: Gaumont Distribution, fundo de incentivos fiscais, France 2, France 3, OCS, Canal+, RAI… puxaram da carteira e, desta vez, generosamente. Uniram-se, defenderam um dos vossos. Os mais poderosos defendem assim os seus privilégios: faz parte da vossa elegância — e do vosso estilo, a violação. A lei está do vosso lado, andam bem pelos tribunais, os media pertencem‑vos. E é para isso mesmo que serve o poder das vossas enormes fortunas: ter o controlo dos seres[2] ditos subalternos. Os seres que se calam, que não contam a história do seu ponto de vista. Chegou o tempo dos mais ricos afirmarem essa bela mensagem, de que o respeitinho se estende agora aos falos manchados do sangue e da merda das crianças que violam. Seja na Assembleia Nacional ou na Cultura — chega de se esconder, chega de simular o desconforto. Vós exigis um completo e incessante respeito. O que é válido para a violação, para os abusos policiais, para os Césars, para a reforma das reformas. É a vossa política: exigir o silêncio das vítimas. Isso faz parte do território e, se for preciso utilizar o terror para fazer passar a mensagem[3], vocês não veem nisso problema algum. O vosso gozo mórbido acima de tudo. E, à vossa volta, só toleram os mais dóceis sabujos. Nada há de surpreendente na glorificação de Polanski: é sempre o dinheiro que celebramos nestas cerimónias; não o cinema. Não o público. É o poder do vosso próprio dinheiro que vêm adular. Vêm saudar o gordo patrocínio anuente que lhe foi oferecido — e é ao poder que ele representa que devemos respeito.
Seria inútil e inconveniente, num comentário sobre esta cerimónia, separar os corpos de certos homens e de certas mulheres. Não vejo nenhuma diferença de comportamento. É verdade que os grandes prémios são ainda exclusivos dos homens já que, no fundo, a mensagem mantém-se: nada deve mudar. Está tudo bem tal como está. Quando [Florence] Foresti se arroga abandonar a cerimónia e se declara “enojada”, não o faz enquanto gaja — fá-lo enquanto indivíduo que se arrisca a vexar a corporação. Fá‑lo enquanto indivíduo que não é totalmente dependente do meio cinematográfico, porque ela sabe que o vosso poder não chegará para lhe desertarem os espetáculos. É a única a poder fazer uma piada sobre o elefante no meio da sala, os outros todos chutam para cantoNem uma palavra sobre Polanski, nem uma palavra sobre Adèle Haenel. Neste meio, jantamos todos juntos, já conhecemos as palavras de ordem: há meses que se irritam que uma parte do público se faça ouvir e há meses que sofrem por Adèle Haenel ter tomado a palavra para contar, do seu ponto de vista, a sua história de criança‑atriz.
Portanto, todos os seres ali sentados naquela noite são convocados com um só objetivo: corroborar o poder absoluto dos dominantes. E os dominantes adoram os violadores. Ou seja, os seus semelhantes, os que dominam. Não os adoramos apesar da violação ou porque são talentosos. Adoramo-los por isto. Pela coragem que têm em reivindicar a morbidez dos seus prazeres, a sua pulsão doentia e sistemática na destruição do outro, na destruição, verdade seja dita, de tudo em que mexam. O vosso prazer é o da predação, é a vossa única noção de estilo. Sabem muito bem o que estão a fazer quando defendem Polanski: vocês exigem que vos admiremos até pela vossa delinquência. É esta exigência que faz que, durante a cerimónia, todos estejam sob a mesma lei do silêncio. Acusa-se o politicamente correto e as redes sociais, como se esta omertà fosse coisa recente, ou culpa das feministas, mas há décadas que o arranjinho está feito: nas cerimónias do cinema francês, nunca se brinca com a suscetibilidade dos patrões. Portanto, toda a gente cala, toda a gente sorri. Se o violador fosse o criado, seria sem piedade: polícia, prisão, declarações bombásticas, defesa da vítima e condenação universal. Mas se o violador é poderoso: respeito e solidariedade. Nunca falar em público do que se passa nos castings, durante as preparações das filmagens ou nas ações de propaganda. Tudo isto se conta, tudo isto se sabe. Toda a gente sabe. A lei do silêncio sobrepõe-se a tudo. É ao abrigo do respeito por tal regra que são selecionados os trabalhadores.
E por muito que o saibamos desde há anos, a verdade é que somos sempre surpreendidos pela soberba do poder. É o que é bonito de ser ver: as vossas nojices funcionam sempre. E sempre é também humilhante ver os participantes subirem ao púlpito, seja para anunciar ou para receber um prémio. Identificamo-nos sempre — não apenas eu, que faço parte do alcouce, mas todos os que assistimos à cerimónia, identificamo‑nos e sentimos vergonha alheia. Tanto silêncio, tanta submissão, tanta sede de subserviência. Vemo‑nos naquele lugar. Temos vontade de morrer. Porque, no fim de contas, somos todos colaboradores desta grande pocilga. Vergonha alheia, quando os vemos não abrir o bico sabendo que Retrato da Rapariga em Chamas não recebe afinal nenhum prémio porque Adèle Haenel ousou falar e que se trata de fazer bem perceber às vítimas, que podiam ter vontade de contar a sua história, que elas deviam pensar duas vezes antes de quebrar a lei do silêncio. Vergonha alheia que tenham ousado convidar duas realizadoras que nunca receberam nem provavelmente receberão o prémio de melhor realização para dar esse prémio a Roman fucking Polanski. Himself. Na nossa cara. Vocês não têm, de facto, um pingo de vergonha. Vinte e cinco milhões, isto é, mais de catorze vezes o orçamento dos Misérables, e o tipo nem é capaz de pôr o filme no Top 5 dos filmes mais vistos do ano. E vocês dão‑lhe um prémio. E eles sabem muito bem porquê — porque a vergonha alheia sentida pela parte do público que percebeu muito bem a mensagem deles, estender-se-á ao prémio seguinte, o dos Misérables, quando serão chamados a subir ao palco os mais vulneráveis da sala, os que arriscam a pele se forem parados pela polícia, e que, pois não havendo gajas na sua equipa (vemos bem que não faltou ali malícia), eles sabem quão fácil é pôr lado a lado a impunidade do realizador homenageado essa noite e a situação do bairro onde aqueles vivem. As realizadoras que entregam o prémio da vossa impunidade, os realizadores cujo prémio está manchado com a vossa ignomínia — a mesma luta. Uns e outros sabem que, enquanto trabalhadores da indústria do cinema, se querem trabalhar amanhã, têm que ficar calados. Nem uma piada, nem uma laracha. Isto, é a cerimónia dos Césars. E os azares do calendário fazem com que a mensagem valha em todos os planos: três meses de greves em protesto contra uma reforma que ninguém quer e que vocês vão fazer passar à força. É a mesma mensagem dirigida ao mesmo povo: “Calas a boca, metes o teu consentimento no cu e sorris quando me vês porque sou poderoso, porque o dinheiro é meu, porque o chefe sou eu.”
Então, quando a Adèle Haenel se ergueu, foi como se o sacrilégio ganhasse vida própria. Uma empregada reincidente, que não força o sorriso quando a conspurcam em público, que não aplaude o espetáculo da sua própria humilhação. Adèle ergue-se, como já se tinha erguido para dizer o que ela acha dessa história do realizador e da sua atriz adolescente, foi assim que a vivi, é assim que em mim a carrego, é assim que ela me está gravada na pele. Vocês bem podem reescrever de mil maneiras essa imbecilidade de separar o homem do artista — todas as vítimas de artistas violadas sabem que não há separação mágica entre o corpo violado e o corpo criador. Transportamos em nós tudo o que somos, ponto. Digam‑me como fazer, senão, para deixar à porta do escritório a rapariga violada antes de me sentar à secretária para escrever, bando de palhaços.
Adèle ergue-se e parte. Nessa noite de 28 de fevereiro não aprendemos grande coisa que não soubéssemos já sobre a bela indústria do cinema francês — mas percebemos como se deve usar um vestido noite. Como uma guerreira. Como de saltos altos, deitar a barraca abaixo, de costas direitas, a nuca hirta de raiva, os ombros descobertos. A mais bela imagem em quarenta e cinco anos de cerimónias — quando Adèle Haenel desce as escadas para se ir embora e vos aplaude, agora sabemos como se faz, ir embora e mandar à merda. Dou 80% da minha biblioteca feminista por essa imagem. Essa lição. Adèle, não sei se te male gaze, ou female gaze mas love you gaze, repetidamente, no meu telefone. O teu corpo, os teus olhos, as tuas costas, a tua voz, os teus gestos disseram tudo: somos as cabras, somos as humilhadas, sim, basta fechar a boca e apanhar porrada, vocês são os patrões, vocês têm o poder e a arrogância do poder, mas não ficaremos sentadas e caladas. Não terão o nosso respeito. Vamo-nos embora. Façam a merda uns com os outros. Celebrem-se, humilhem-se uns aos outros, matem, violem, explorem, destruam tudo o que vos passa à frente. Nós erguemo‑nos e partimos. É talvez uma imagem premonitória dos tempos que aí virão. A diferença não está entre homens e mulheres, mas entre dominados e dominantes, entre os que entendem confiscar a narrativa e impor as suas decisões e os que se vão erguer e partir gritando. É a única resposta possível às vossas políticas. Quando não estiver bem, quando vai longe de mais; erguemo‑nos, partimos e gritamos e insultamos-vos e mesmo se somos os mais pequenos, mesmo se levamos com o vosso poder de merda na cara, desprezamos‑vos, vomitamos‑vos em cima. Não temos nenhum respeito por esta fantochada de respeitabilidade. O vosso amor pelo mais forte é mórbido. O vosso poder é um poder sinistro. São um bando de funestos imbecis. O mundo obscuro que vocês criaram para reinar é irrespirável. Erguemo-nos e partimos. Acabou. Erguemo-nos. Partimos. Gritamos. Vão‑se foder.
Virginie Despentes, escritora
(Trad. Guilherme Proença)
Publicado originalmente no Libération, 1 de março de 2020.
[1] N.T.: “49.3” artigo da Constituição que, resumidamente, permite que o Governo aprove uma lei sem passar pela Assembleia ficando, no entanto, sujeito a uma moção de censura.
[2] N.T.: A palavra “corps”, muitas vezes utilizada, é traduzida de duas maneiras diferentes, “seres” ou “corpos”, ou omitida “os mais vulneráveis”.
[3] N.T.: Sem querer entrar numa análise do texto, para além do estilo impetuosamente oral (que faz despontar, por vezes, uma sintaxe arrojada), o texto de Virginie Despentes é também rigorosamente fundado numa linguagem política e revolucionária. Neste caso, território faz referência às políticas regionais e o terror lembra o período negro da Revolução Francesa (culminando na condenação de Robespierre à guilhotina em 1794). O texto é aliás fundado, do princípio ao fim, na expressão latina surge et ambula do Evangelho Segundo São Mateus que renasce no séc. XIX no movimentos socialistas e comunistas.
O assédio e o abuso no cinema esteve em destaque no Podcast Dar Voz A esQrever, oiçam:
1 comentário