10 10: Fado Bicha lembram os inimigos do avanço dos direitos LGBTI em Portugal

Muitas vezes falamos dos avanços que fizemos na última década em Portugal como se algo fosse conquistado por senso comum e sem ter de batalhar contra tudo o que estava escrito e vigente na lei social. Sem ter de confrontar tantas vozes dissidentes que nos tentaram minorizar e fazer desaparecer. Vozes essas nos seus púlpitos da Assembleia da República e também da praça pública, na televisão, em revistas, em jornais.

E não foram só políticos conservadores que tentaram fazer crer que os direitos de pessoas LGBTI eram estratégia política da esquerda e uma “treta” para distrair os Portugueses e o país das suas “verdadeiras prioridades”. Foram também figuras públicas gay, abertamente ou não, a diminuirem a luta dos que vão para a rua lutar pela sua liberdade e a sua identidade. São os exemplos que temos, homofobia internalizada e tentativa de ser “normal”, o que quer que isso seja. Lamentável. Triste.

Fado Bicha criaram um manifesto, produzido por Moullinex e montado por Evas Daninhas, que reúne todas estas pessoas que tentaram publicamente travar os avanços sociais das pessoas LGBTI nos passados 10 anos. Desde a igualdade no acesso ao casamento, passando pela adoção entre pessoas do mesmo sexo, até à autodeterminação de género. Políticos, comentadores, jornalistas, escritores, apresentadores de televisão. Antagonistas a destilar ignorância e discriminação orgulhosas. Todos a negarem a nossa existência. Não nos podemos esquecer disto se queremos seguir em frente na luta. E foi isso mesmo que Fado Bicha e amigos e amigas fizeram. Um documento importante para a posterioridade e parte do ódio que combatemos. Para a nossa História.

Vejam:

Aqui fica o manifesto “inverso”:

Chamámos a 10 10 um manifesto bicha ao contrário. Como um negativo de fotografia. Aquilo que um manifesto não deve ser é também um manifesto. Porque nos ensina a estar atents, a descodificar os discursos cujo objetivo é controlar-nos, silenciar-nos, apoucar-nos. Porque nos ajuda a identificar padrões, estratégias e mecanismos de repressão. Que se repetem e se alimentam da ignorância política e cultural para afirmar a sua hegemonia epistemológica e moral assassina, incluindo no parlamento. São mecanismos que nos matam, não tenhamos dúvidas. E porque um manifesto assim devolve o nosso desconforto à procedência. Não aceitamos mais ficar com ele guardado numa gaveta interna a destilar pus. Por dentro não nos matarão mais! Estamos habituads a que falem sobre nós, com meias palavras ou inteiras palavras feias, que usam como bandeirilhas em disputas corriqueiras, como se as nossas identidades, expressões ou práticas sexuais fossem ofensas à dignidade que podem ser usadas displicentemente para provocar alguém. Como se fossem, em essência, adjetivos pejorativos. Nós não somos um adjetivo. Somos nomes. E os nomes servem para nomear, para dar existência. 10 10 resgata parte do debate público sobre temas LGBTI nos 10 anos que passaram desde a aprovação no parlamento português (e renitente promulgação do então presidente da república) do casamento igualitário. Aquele que foi, provavelmente, o primeiro grande debate público sobre homossexualidade em Portugal abriu caminho a uma visibilidade nunca antes experimentada. Finalmente, falava-se sobre os nossos direitos, sobre a dignidade das relações amorosas que estabelecemos, sobre as nossas famílias; e não apenas sobre escândalos, relações secretas, o silêncio das nossas identidades vividas entre quatro paredes. Novos padrões se estabeleceram em relação ao que se podia dizer sobre pessoas LGBTI nos espaços públicos, na televisão. Criticou-se o humor. Coisas que antes eram aceites acriticamente passaram a ser desconfortáveis ou mesmo inaceitáveis. Houve uma higienização do discurso público que nos protege e nos obriga a refletir sobre o que dizemos. 10 10 mostra o reverso disto. 10 10 devolve o desconforto que sentimos ao saber que a única coisa que um artista respeitado tem a dizer sobre a conquista de um direito igualitário por uma minoria historicamente oprimida, morta, presa, mutilada cirurgicamente, rejeitada é: casem-se e calem-se. Porque, durante dois anos, ficou farto de ouvir falar sobre nós, de ouvir as nossas vozes, de ouvir a palavra homossexuais. Ou um presidente da república não ter, durante seis minutos de reação pública à aprovação de uma lei histórica de igualdade para um grupo social discriminado, uma única palavra de empatia ou reconhecimento histórico. 10 10 devolve a raiva que sentimos ao ouvir uma jornalista respeitada com o privilégio de partilhar as suas opiniões no horário nobre dum canal generalista dizer que as pessoas intersexo não existem, são “ideologia”. Que as pessoas trans não existem, não sabem quem são, que as suas afirmações de identidade equivalem a alguém dizer ser um armário ou uma avestruz. Isto é matar deliberadamente. 10 10 devolve a impotência de ouvirmos um deputado dum partido cristão usar a estratégia de indução de medo em relação a uma iminente catástrofe económica e social para justificar o bloqueio de direitos sociais que defende unicamente por motivos religiosos e conservadorismo. 10 10 devolve a vergonha de ouvirmos figuras públicas homossexuais reproduzirem discursos homofóbicos, que se alimentam dos seus armários internos não refletidos e do seu privilégio económico, racial e de género; serem carrascos dos seus iguais quando poderiam ser figuras de referência, empoderadoras de todas as pessoas LGBTI e não apenas dos gays ricos e normativos. 10 10 devolve o ridículo também… E devolve tudo, também, às pessoas que representa com as suas próprias palavras. Que façam o que quiserem com isto mas já não nos caberá só a nós digeri-lo. É um manifesto bicha ao contrário para nós, bichas. Todas as bichas: mulheres, homens, pessoas não-binárias, lésbicas, pessoas trans, gays, intersexo, bissexuais. Para tods que apoiam as nossas existências. As nossas vidas são dignas, as nossas famílias são dignas, o nosso amor é digno, o nosso desejo e o nosso sexo são dignos. Dignos e iguais. Que este espelho invertido sirva também para nos lembrar sempre disso.


O vídeo-manifesto esteve em destaque no Podcast Dar Voz A esQrever, oiçam: