‘Carta para Além dos Muros’ é uma tremenda viagem à história do VIH/sida no Brasil

Em Carta para Além dos Muros, documentário da autoria de André Canto, seguimos duas entidades: os poemas de Caio Fernando Abreu, que dão nome ao filme, e Caio Fernando Abreu, o jovem seropositivo incógnito que adotou o nome do autor para se manter no anónimato. Caio descobriu o seu estado no mesmo dia em que, anos antes, o escritor soube igualmente estar infetado com o VIH e o assinalou num capítulo de um dos seus livros.

É este, aliás, o fio condutor de todo o documentário, que não deixa de impressionar, não só pela quantidade de testemunhos que conseguiu obter, mas também pela forma como conta a história do VIH/sida no Brasil da década de 1980 até aos dias de hoje.

Sem esquecer os marcos históricos como a incógnita inicial da origem e da transmissão daquele vírus, que foi apelidado de “peste gay”, ou a morte de Cazuza [na imagem acima], um popular cantor brasileiro que faleceu em 1990 de complicações da sida, este documentário vai além de muitos outros. Não ignora as assimetrias sociais, raciais e de género que alimentam estigmas contra quem contrai o VIH no Brasil

É documentado como os homens gay foram os primeiros a tornar visível a existência de uma pandemia até então desconhecida, trazida dos Estados Unidos pelas pessoas mais viajadas e privilegiadas. São também estes homens gay os primeiros a conseguir o acesso aos tratamentos quando, anos mais tarde, surgiram. Ora, brasileiros não brancos continuaram — e continuam — assim a sofrer com o aparecimento da sida em muito maior proporção que homens brancos que, embora seropositivos, escapam às complicações do vírus, graças à medicação que lhes está acessível.

Também as mulheres ficaram inicialmente para trás na pesquisa clínica para a compreensão dos efeitos da doença e cura, tendo o primeiro estudo sobre o impacto do vírus numa mulher surgido 12 anos depois do mesmo correspondente para homens.

Contra estigmas religiosos, contra resistência política, este documentário mostra como a população LGBTI brasileira se uniu e criou as próprias famílias de apoio com pessoal clínico que se interessava verdadeiramente no cuidado e tratamento das pessoas seropositivas. Mostra igualmente como foi determinante a educação que passou da utilização do estigmatizante e perigoso conceito de “grupos de risco” para a atual noção de “comportamentos de risco”.

Esta é uma tremenda viagem, por vezes poética, que não cede ao facilitismo e ao efeito de choque que alguns outros documentários usam no retrato do tema. Sim, são apresentadas pessoas seropositivas e algumas com sida, mas, mais que isso, é-lhes dada uma voz que para nós fala e, com humanidade, contam-nos os obstáculos que encontraram e das suas vitórias pessoais. Vemos, por exemplo, o alívio de uma mãe que, adivinhando ter sido infetada pelo marido doente, soube que o filho de ambos estava saudável e assim permitiu-se cuidar de si e viver hoje uma vida feliz com o mesmo.

As gerações atuais, não tendo presenciado na primeira pessoa a luta inicial contra a pandemia, não sentem o receio de serem infetadas e por isso são um dos grupos onde as infeções pelo VIH têm mais subido, entre os 15 e os 18 anos, no Brasil. É aí que surge a importância da educação sexual, para que, quando adolescentes dão início à sua vida sexual, o façam de forma informada, segura e responsável. Curiosamente, e ao contrário de quem defende o fim da educação sexual e a substitui pelo conceito de abstinência, adolescentes que têm acesso a aulas de educação sexual tendem a começar a vida sexual mais tarde. 

Todas estas pessoas, clínicas, ativistas, jornalistas, políticas, artistas, amigas, seropositivas – sim, é verdadeiramente impressionante a variedade que Canto conseguiu reunir — contam assim a história na primeira pessoa, mostrando que “o vírus está hoje muito mais presente no nosso imaginário do que no nosso corpo.

Carta Para Além dos Muros esteve em destaque no Podcast Dar Voz A esQrever 🎙🏳️‍🌈, oiçam:

O VIH e o documentário voltou a ser destaque num novo episódio do Podcast, com reparos e reforços do Luís Veríssimo do GAT, oiçam:

O documentário está disponível na Netflix.

Nota: Texto revisto pela Ana Teresa.