O ataque húngaro às pessoas trans

A 31 de Março, Dia Internacional da Visibilidade Trans, o Governo Húngaro do partido de extrema-direita Fidesz e encabeçado por Órban, inscreve na lei nacional mais um ataque aos direitos LGBT no país. A sociedade civil e ativistas reagem e contra-atacam, apelando à solidariedade e ajuda internacional para impedir o avanço da lei.

Não sempre é fácil acompanhar o que se passa no mundo, mesmo quando isso significa atropelos aos direitos que temos por conquistados em Portugal. O ruído noticioso, a COVID-19, o distanciamento e mesmo a censura dos meios de comunicação social húngaros impede muitos de nós de nos apercebermos e reagirmos ao ataque continuado que as pessoas LGB e particularmente Trans sofrem há vários anos.

Partilho o relato de ativistas húngarxs que lutam pelos direitos humanos no país e contam uma longa história de repressão.

Artigo 33: um ataque direto aos direitos trans

Krisztina Kolós, da associação trans húngara Transvanilla, acredita que a 31 de março, com a lei que elimina o reconhecimento de género, se destruiu pelo menos uma década de trabalho e avanços no país. O que está em causa é a capacidade de mudar de género no registo nacional, o equivalente ao cartão de cidadão português, que por sua vez serve de base a todos os outros documentos oficiais. A lei prevê que apenas se mencione o sexo à nascença. Desde 2003 que é possível mudar de género através de um processo administrativo, que só viria a ser legislado em 2014; contudo desde 2010 – altura em que o partido Fidesz sobe ao poder que o governo não consulta a sociedade civil e ignora os peritos em direitos humanos. No debate sobre a lei em causa, o Governo viria mesmo a dizer que “não temos sequer de saber da sua existência [de pessoas trans]”.

A ativista trans, relembra que há 13 anos que não é disponibilizada qualquer informação pública sobre pessoas trans no país, essencial para que se conheça e proteja a comunidade. O governo alega leis europeias de proteção de dados e privacidade para não disponibilizar os dados. Ativistas colocaram o governo em tribunal por isto, e Krisztina acredita que este ataque direto acontece em resposta a estas ações.

Uma década de repressão sobre pessoas LGBTI

Ativistas húngarxs apelidam 2009 de ‘ano homofóbico’. Foi o ano em que a narrativa estatal começa a insinuar ligações entre homossexualidade e casais homoparentais e pedofilia, a promover propaganda anti-LGBTI nos principais jornais e a tentar banir marchas do orgulho. Foi também o ano em que apareceram programas de ‘terapia de conversão’ na tv.

Tamás Dombos, da Hungarian LGBT Alliance conta como o Artigo 33 de 31 de março é parte de uma longa e ampla estratégia de repressão dos direitos LGBTI na Hungria. Já em 2010, assim que sobe ao poder, o Fidesz tenta mudar a constituição para definir que o casamento é entre um homem e uma mulher, definindo também o que é uma família. Desde então que a postura oficial do governo é de manter o status quo, que é como quem diz: ‘não nos chateiem e nós não vos chateamos’, sem retirar – ou garantir mais – direitos e sem interferir na vida privada de cada um. Desde, claro, que seja privada. Na prática continuou a existir propaganda e discriminação ativa. 

Tamás explica que o discurso oficial muda em 2018, com propaganda e perseguição ativa aos direitos LGBTI, mas sem tocar em assuntos trans. Chega agora o ataque às pessoas trans, fortemente patrocinado pelos órgãos de comunicação controlados pelo Estado que trazem o ‘aviso da corrupção do Ocidente’. O status quo já não se vai manter, e o Governo fará o que pode para tornar o reconhecimento de género impossível, diz Tamás.

Viktória Radvànyi, organizadora do Budapest Pride, concorda com esta visão. Reforça a ideia de que o Governo quer ‘manter-nos de cabeça baixa’ e ‘desmobilizar-nos’. A ativista não vê com espanto esta nova lei, sendo o desenvolvimento de anos de repressão e do endurecimento da narrativa começada em 2018. A narrativa ‘tem vindo a crescer, em semelhança com a narrativa do Inverno demográfico que assistimos na Rússia: se as pessoas LGBT são mais aceites há menos pessoas a entrar em relações heterossexuais, logo menos crianças a nascer. É claramente tirada das ideias de homofobia extrema russa’.

Viktória traz-nos um relato concreto e perturbador do efeito da repressão estatal. Estudos de organizações locais revelam que 67% das pessoas trans contemplaram suicídio, sendo que 40% chegou a tentá-lo. Também 40% das pessoas trans têm medo de perder o emprego por serem trans. Juntos, estes números revelam a importância que aceitação, igualdade e visibilidade na sociedade/meios comunicação têm na saúde e bem-estar.

O impacto nas vidas trans

Leo Mulió Alvarez, Policy Adviser na Transgender Europe, relembra o verdadeiro impacto destas medidas no dia-a-dia das pessoas trans. O que significa não haver reconhecimento de gênero? Leo fala da incapacidade de se assumir como trans por medo de que a não coincidência com os documentos oficiais resultem em deslegitimação e acusações de fraude. Atividades mundanas tornam-se situações de stress, e situações sensíveis com ir ao hospital, ou mesmo ser preso/a tornam-se situações de risco de vida, com a possibilidade de ser alocado/a à ala errada. 

Leo reforça outro aspecto estigmatizante: ‘as pessoas trans são excluídas de participar na sociedade, com a comunidade a ter dificuldades em aceder a serviços de saúde ou ao mercado de trabalho’. O ativista também relembra que estas políticas reforçam a violência e a discriminação sobre a comunidade, colocando-a em ainda maior risco. ‘Políticas destas enviam uma mensagem à sociedade: nós não merecemos respeito’, diz, comparando com o exemplo da Malta em que o passar de leis positivas levou a uma mudança alargada da percepção social.

É ainda importante ressalvar, diz Cianán Russell da Ilga Europe apoiado no comunicado da OII Europe, que a medida impacta igualmente as pessoas intersexo. Coloca as suas vidas em perigo e num limbo constante – ao impôr a definição do gênero à nascença, esta lei não permite o que seria mais desejado: deixar as pessoas intersexo crescerem e decidirem qual/se o gênero com que se identificam, impedindo a definição errada de gênero. A organização pede também mais educação sexual ao público em geral, em específico sobre os temas intersexo e que se lute contra os discursos de ódio.

Não estão sós!

Terry Reinkle, Co-Presidente do Intergrupo LGBT do Parlamento Europeu diz: “… Esta alteração carece de qualquer mérito ou efeito positivo, a qualquer título. O reconhecimento legal de género constitui a base para a protecção das pessoas trans na Hungria. Sem acesso a ela, estão amplamente expostas à discriminação e ao assédio. Esta medida é nada mais nada menos do que um abuso intencional. A comunidade europeia tem de garantir que não fique impune.”

P.S.: A 15 de Abril, 63 Eurodeputados assinaram uma carta a pressionar o Governo Húngaro a revogar a proposta de lei que infringe os direitos trans e intersexo.

Torna-se evidente de como é também nossa responsabilidade enquanto cidadãos de ser solidários e agir face a estes abusos. Há várias formas de o fazer. Deixo duas:

  1. Assinar a petição Help Protect Hungarian Trans People: https://action.allout.org/en/m/155ffe1/
  2. Apoiar directamente as associações húngaras para que possam continuar a sua luta. Transvanilla, Hungarian LGBT Alliance
  3. Exigir aos deputados na Assembleia da República e Eurodeputados no Parlamento Europeu que se pronunciem contra esta violação dos direitos humanos. Contacta-os!

Os relatos que lemos são baseados nos testemunhos da sociedade civil e ativistas dos direitos humanos e LGBT húngaros durante o evento do Intergrupo LGBTI do Parlamento Europeu: Consultation with civil society on LGBTI rights in Hungary a 9 de Abril. Neste evento, participaram várias associações internacionais, locais e eurodeputados e ficou claro que é necessário o Parlamento Europeu e as instituições internacionais pressionarem o Governo Húngaro para reverter os abusos aos direitos trans.


O ataque do Governo húngaro aos direitos das pessoas trans esteve em discussão no Podcast Dar Voz A esQrever 🎙🏳️‍🌈, oiçam:

Os Direitos LGBTI na Europa, incluindo o atentado aos mesmos na Hungria, os ataques homofóbicos em França e Portugal no Rainbow Map estiveram em destaque no mais recente episódio do Podcast Dar Voz A esQrever 🎙🏳️‍🌈, oiçam:

Linhas de Apoio e de Prevenção do Suicídio em Portugal

Linha LGBT
De Quinta a Sábado, das 20h às 23h
218 873 922
969 239 229

SOS Voz Amiga
(entre as 16 e as 24h00)
213 544 545
912 802 669
963 524 660

Telefone da Amizade
228 323 535

Escutar – Voz de Apoio – Gaia
225 506 070

SOS Estudante
(20h00 à 1h00)
969 554 545

Vozes Amigas de Esperança
(20h00 às 23h00)
222 080 707

Centro Internet Segura
800 219 090

Quebrar o Silêncio (apoio para homens e rapazes vítimas de abusos sexuais)

Linha de apoio: 910 846 589 
Email: apoio@quebrarosilencio.pt

Associação de Mulheres Contra a Violência – AMCV

Linha de apoio: 213 802 165 
Email: ca@amcv.org.pt

Emancipação, Igualdade e Recuperação – EIR UMAR

Linha de apoio: 914 736 078 
Email: eir.centro@gmail.com

Por Diogo Pereira

Jovem que gosta de ter opinião sobre coisas. Escreve sobretudo sobre política, Diversidade e o que se passa na Europa. Acredita que 'a alegria é a coisa mais séria da vida', e fundou a primeira associação de trabalhadores LGBTI da banca portuguesa. Vive em Bruxelas, onde adoptou um gato.

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