Ser Gaymer em Tempo de Quarentena? Sugestões e Confissões

Neste momento em que estamos todas e todos fechados em casa, em quarentena e/ou isolamento social, viramo-nos para aqueles confortos e passatempos que nos dão algum asilo do estranho mundo que por agora está a morar fora das nossas janelas. E, para quem tem ou teve essa “panca”, dificilmente há melhor distração do que nos deixarmos emergir noutros espaços, noutros lugares, noutras realidades, noutro mundo. E é aí que entra a magia dos videojogos, cada vez mais próximos das grandes produções de Hollywood, numa indústria multibilionária que hipnotiza milhões de fãs. 

Numa nota pessoal, enquanto crescia, os videojogos sempre foram um lugar seguro para eu ser próprio sendo outra pessoa, já que aquilo que eu era não era propriamente bem aceite. Por isso, o tempo em que me escondi por detrás da Lara Croft, do Guybrush Threepwood, das personagens andróginas de Final Fantasy ou de Pele, a minha rogue de cabelo prateado de World of Warcraft, foi importante para maturar e confrontar a minha identidade, dolorosamente e em solidão, protegido do mundo lá fora. Não é inusitado que exista uma comunidade tão grande de pessoas LGBTI, nomeadamente homens gay (gaymers), viciada em videojogos. E quase todas e todos partilhamos esta necessidade de vivermos na pele de outra pessoa, mais forte e corajosa do que éramos na altura. 


Discutimos jogos e gaymers no Podcast Dar Voz A esQrever 🎙🏳️‍🌈, oiçam:


A indústria dos videojogos caminha para a representação também da comunidade LGBTI nos videojogos, apesar de toda a misoginia ainda observada em muitos estúdios e também nos jogadores que encontram virtualmente um subterfúgio ideal para a sua masculinidade tóxica. Mas há cada vez mais excepções mesmo nos grandes estúdios, e trago-vos algumas delas, umas mais recentes que outras, todas para a Playstation 4 (PS4) mas também disponíveis noutras plataformas. Não coincidentemente todos são RPG (role-playing game) single-player de uma forma ou outra, e três são open world, ou seja, dão liberdade total de movimento no mundo que criam em que a história principal é apenas um dos componentes da magia.

 

Horizon Zero Dawn

Este jogo da Guerilla Games foi a minha última paixão, um open world RPG passado numa Terra pós-apocalíptica em que os poucos sobreviventes humanos voltaram a pequenas civilizações primitivas para se protegerem das máquinas que tomaram conta do Planeta. A protagonista é Aloy e imediatamente iconográfica, uma jovem mulher que procura significado nas suas origens desconhecidas, e a razão pela qual foi forçosamente exilada da sua tribo. É um jogo imersivo e que conta com uma narrativa principal intrigante bastante pertinente, em que Aloy se vê confrontada com a própria noção de humanidade. E depois de anos de isolamento, tem uma série de flirts com homens e mulheres, sem nunca nada se concretizar infelizmente, mas a realidade é que não há tempo para isso quando se está a salvar o Mundo. Mas deixa no caminho uma série de pretendentes de ambos os sexos. Sacana.

Grand Theft Auto IV/V

Talvez a saga que originalmente definiu os open world. A Rockstar Studios revolucionou o mundo dos videojogos com Grand Theft Auto (GTA) III e desde aí foi sempre a elevar a fasquia. GTA V é um dos jogos mais livres que alguém alguma vez pode jogar, liberdade essa só recentemente destronada por Red Dead Redemption 2, dos mesmos estúdios. Mas GTA sempre fez questão de representar pessoas LGBT nas narrativas, nem sempre de forma favorável mas a realidade é que não é uma saga conhecida pela benevolência moral das personagens. GTA IV teve uma personagem de destaque conhecida como Gay Tony, que teve direito a um Expansion Pack só dele, e GTA V tem o memorável Trevor, bissexual, para o bem e para o mal. 

The Last of Us 

O jogo sensação de 2013 da Naughty Dog teve já um remaster para a PS4 e é uma das mais aclamadas narrativas de videojogos da última década. Estamos novamente nuns Estados Unidos da América em que uma mutação de um fungo provocou um apocalipse zombie. O protagonista é Joel, parte da resistência contra a infecção, que se vê responsável por uma jovem chamada Ellie, que, estranhamente, é imune. É ela a grande estrela e cerne emocional do jogo e vem-se a saber mais tarde que é lésbica, nomeadamente na sequela do jogo que entretanto se atrasou. Também Bill, uma personagem secundária, é gay. E extremamente irritadiço. E implacável. 

The Witcher 3

Provavelmente o meu jogo favorito dos últimos dez anos e bastante bem classificado num top pessoal de todos os tempos. Esta saga de livros do polaco Andrzej Sapkowski foi recentemente também adaptada para a Netflix, com o suculento Henry Cavill no papel protagonista, mas já tinha deixado a sua marca vincada no mundo dos videojogos. Se GTA inventou os open world RPG, The Witcher (dos estúdios CD Projekt Red) reinventou-os no mundo de fantasia acompanhando Geralt of Rivia, um mutante que usa magia bélica para derrotar monstros e assombrações. Nunca perdi tantas horas a jogar algo, e temos dois Expansion Packs incríveis, dos quais recomendo vivamente Blood and Wine. E na narrativa principal temos também Ciri, a chave de todo o jogo, também uma mutante, é bissexual e nos livros teve inclusivamente uma relação romântica com a humana Mistel.

Final Fantasy X-2/VII Remake

Esta saga da Squaresoft, agora Square Enix, já existe desde 1987 e tem um lugar muito especial no coração deste jogador. Como comecei em 1999 com Final Fantasy VIII (e o estalar de dedos de Shiva que tenho quase a certeza me tornou gay), esse jogo será sempre o meu predilecto, mas estes RPG japoneses sempre fascinaram em particular a comunidade LGBT pela forma como misturavam romance, fantasia e personagens muitas vezes andróginas, elencadas por protagonistas que, devido a qualquer aspecto da sua identidade, se tornaram lobos solitários. É o caso de Squall Lionheart, Lightning e originalmente, Cloud Stryfe, personagem principal de Final Fantasy VII de 1997, que viu agora relançado o muito aguardado remake a 10 de março.


O Cloud em Drag voltou a ser destaque num novo episódio do Podcast Dar Voz A esQrever 🎙🏳️‍🌈, oiçam:


É uma expansão notável da história que revolucionou os RPG e encontro-me neste momento já perdido de amores novamente por Cloud, Tifa e Aerith. E também Sephiroth, quem não? E apesar de não ter nenhuma personagem abertamente LGBT — afinal de contas o Japão está bem atrasado em relação ao resto do Mundo nestes assuntos — não há jogo mais gay que Final Fantasy X-2, uma continuação do eterno favorito Final Fantasy X — ambos remasterizados para a PS4 — e cujo sistema de batalha parece ter sido desenhado por uma drag queen. Yuna, e a sua girls band de destemidas mulheres, muda de roupa durante o combate para outfits, cada um mais fabuloso que o anterior, que detém poderes completamente diferentes. E se não acreditam, vejam esta introdução do jogo. 

Por isso, não desanimem e deixem-se perder noutros mundos enquanto este não volta ao lugar. Bons jogos, unicórnios. 

Nota: Texto revisto pela Ana Teresa.