PEACOCK – NOVA ARMA DE VISIBILIDADE PARA HOMENS GAY PRECISA-SE

Esta semana uma parte significativa das pessoas está a regressar paulatinamente à (nova) normalidade. Na rentrée as pessoas vão voltar a encontrar-se entre si, no trabalho, nos transportes, no supermercado, no bairro ou simplesmente na rua. Estão ainda por reabrir os bares, a maioria dos restaurantes, as discotecas, as esplanadas e as saunas ou bares de sexo.

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Fonte: redbubble.com

Por razões sanitárias e epidemiológicas, as pessoas não vão mais tocar-se em público, gestos adiados sine die, reservando o toque das mãos e das mucosas apenas para os contactos entre pessoas que sempre se tocaram (um casal, por exemplo), entre pessoas já imunes ou entre os poucos que vão querer desafiar a matemática do contágio. Assim se espera, pelo menos.

Mas não é sobre os contactos íntimos que pretendo aqui falar. É mesmo dos contactos públicos, com a visibilidade da luz do dia.

Tenho-me perguntado como vão muitos homens gay cumprimentar-se agora?

Até há pouco tempo, a convenção na sua versão mais básica e heteronormativa, dizia que, em Portugal atente-se, pois que outros costumes grassam mundo fora, os homens se cumprimentam fisicamente com um aperto de mão (o chamado passou-bem), em casos de maior intimidade também um abraço ou, no limite, uma palmadinha. O cumprimento com dois beijos na cara faziam-no pai e filhos (e nem todos se acostumaram a tal intimidade) e o cumprimento com um só beijo na cara faziam-no pai e filhos, se de classe alta se tratasse (poder-se-ia aqui aplicar o ditado less is more). Dependendo dos hábitos das famílias, nalguns casos também irmãos homens, ou tios e avós, se cumprimentavam com dois beijos (ou um se a classe o permitisse ou a nobreza o obrigasse).

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Fonte: filme Hidden Kisses (título original: Baisers cachés) de Didier Bivel (2016)

Ora, acontece que muitos homens gay (não todos, repare-se) tinham o hábito de, ultimamente (desde há algumas décadas talvez, não sei bem, mas creio que sempre em crescendo), se cumprimentarem com dois beijos na cara, eventualmente um só, nos casos já referidos. Eu próprio me contava entre os muitos que publicamente cumprimentava alguns homens gay com dois beijos na cara. Tal cumprimento foi, e esperemos que ainda venha a ser, um ato político, pela afronta que faz da convenção e pela quase direta conotação com a orientação sexual dos que se beijavam.

No statement destes homens, que num ato destes escolham mostrar, ou induzir, a sua orientação sexual, reside uma estranha decisão. Por um lado, os homens gay têm neste momento a escolha pela liberdade de cumprimentar outro homem com um ou dois beijos, mas por outro lado isto implica perder a liberdade de manter a sua orientação sexual no foro íntimo, ou não revelada.

A escolha é entre ser livre, mas perder liberdade; um direito fundamental pelo outro. Note-se que isto só é verdade porque o (mau) hábito na nossa sociedade é assumir-se que, por defeito, as pessoas são heterossexuais, sendo isto aplicado a homens e mulheres.

Claro que o leitor, ou a leitora, poderá dizer que nem todos os homens que beijam outros homens são gay, o que é absolutamente verdade, mesmo excluindo os casos com laços de família que já elencámos. Mas raros são os casos em que um deles, pelo menos, não o seja. Em todo o caso, este não deixa também de ser um outro ato político. Estes casos, ou casos em que uma ou duas das pessoas sejam bi, são, pois, inexpressivos para o que pretendo aqui expor agora, sendo, contudo, muito interessantes para um outro texto.

Ainda coloco aqui uma pequena nota de que não estou a referir-me às mulheres e ao cumprimento entre mulheres e homens ou entre duas mulheres, por ser a dita convenção básica e normativa, e não inclusiva, menos plural no que toca às mulheres. De um modo geral, o cumprimento entre mulheres é com beijos em contexto social e misto em contexto de trabalho. Creio, embora admita opiniões diferentes, que o contexto neste caso não atende à orientação sexual, vincando até a invisibilidade da sexualidade feminina. Fica por explorar o cumprimento entre lésbicas com um passou-bem, embora reconheça ter pouca informação sobre este assunto.

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Fonte: http://www.zoonewengland.org

Voltando ao tema, o encontro entre dois homens gay à luz do sol (bom, na verdade à luz da lua também resultava, desde que observado), quando estes ainda se beijavam, é um ato no espaço político que ficou totalmente comprometido com a pandemia de covid-19. Consequentemente, quando tal voltar a acontecer, no futuro próximo a até podermos todos voltar ao contacto físico mais livre e expansivo, os dois homens gay não vão provavelmente beijar-se, limitando o espaço da sua intervenção política, por razões sanitárias e epidemiológicas.

Este efeito secundário e negativo da pandemia é deveras importante, porquanto destrutivo de um espaço conquistado por décadas de lutas por pessoas lésbicas, gays, bi, trans, intersexo e aliadas. Este statement dava visibilidade aos homens gay, lembrava os demais da existência de pessoas LGBTI, sobretudo G neste caso e permitia normalizar as relações entre pessoas, todas elas. As pessoas viviam cada vez mais a sua individualidade com pacífica normalidade. E, por que não o dizer? Cada vez havia mais homens gay que pouco ou nada disto sentiam, porque os beijos de muitos outros abriram algum do caminho para a sua normalização. E ainda bem que assim é, pois que a evolução dos últimos anos não se conta por pouca.

Mas como vamos, agora, reconquistar este espaço? Como resistir à perda da visibilidade gay, se quando dois homens, que antes se beijavam na cara, passam a ter de manter o distanciamento social de pelo menos um metro ou dois? Como tornar visível, quem assim o desejar, a orientação sexual, por detrás de uma viseira ou com uma máscara comunitária?

Tenho andado a pensar nisto, mas acabo quase sempre por perceber que, ou não são práticas estas novas armas da visibilidade, ou não iriam ter o mesmo efeito. Desde a possibilidade de andarem com máscaras arco-íris (rainbow) ou outros objetos rainbow, passando por usar penachos na cabeça ou ensaiar gritos comunitários, quais jogadores de rugby enfurecidos, estas formas pecam pela falta de originalidade que uma nova arma destas exige.

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Fonte: Pinterest.com – Peacock

A única ideia razoavelmente interessante que tive, foi a de que os homens (todos eles) poderiam passar a andar com caudas de pavão. A bem da curva epidemiológica, tal costume, por si só, ajudaria na imposição do distanciamento social e, no fundo, também estaria coerente com a sua condição de privilégio. E, assim, o cumprimento de dois homens gay passaria, nestes termos, a ser através da exibição mútua e vibrante das suas caudas em leque, para evidência instantânea da sua orientação sexual e, pois, como manutenção do ato político tão importante.

Tom jocoso à parte, sinto-me realmente preocupado com a perda daquele gesto, o beijo entre homens, que por ser tão natural e, ao mesmo tempo, com um caráter político tão vincado e poderoso, estando o mundo a assistir, em algumas geografias, a um retrocesso tão acentuado nos direitos das pessoas LGBTI, o retrocesso seja agora ainda maior, com uma implicação severa no gozo da plena cidadania e nos direitos, liberdades e garantia da população LGBTI.

Uma nova arma da visibilidade para homens gay precisa-se. Sejam peacocks ou não, é preciso nunca voltar atrás.

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Fonte: inhabitat.com
Foto de capa, fonte: toxel.com

Afetos em tempos de pandemia e pavões 🦚 estiveram em discussão no Podcast Dar Voz A esQrever 🎙🏳️‍🌈, oiçam: