A Presença de Mulheres Cis em Espaços Gay

No meio desta estranha era de isolamento social, a arte do drag encontrou uma forma de se manter à tona fora dos bares e das salas de espetáculo. E foi num desses shows online que vi uma das minhas queens favoritas, Miz Cracker, a fazer a última performance do seu espetáculo intitulado American Woman, um inesperado manifesto de veneração das mulheres que nos apoiam a nós, especificamente homens gay, bissexuais ou queer. E, segundo a própria, muitos dos homens gay que iam ao seu show ao vivo saiam a meio dos discursos feministas porque sentiam que não era para eles e não lhes dizia nada. Acabou com chave de ouro a abordar a controvérsia que houve há umas semanas depois de revelado o anúncio do mais recente episódio da nova temporada de RuPaul’s Drag Race, em que as seis queens restantes fazem um drag makeover a fãs femininas da série de televisão. 

Fique registado que este desafio acontece todas as temporadas desde o início da série, muitas vezes dando lugar a homens hétero cis a descobrirem o drag pela primeira vez. Mas mal foi exibido o tal anúncio, uma bomba explodiu. “Que raio estão mulheres (heterossexuais, supostamente) a fazer no Drag Race em vez de dar lugar a pessoas da comunidade?”. Por comunidade, entenda-se homens cis e gay, claro. Muito se fala do problema da representação de pessoas não cis na série, e muitas vozes se têm levantado para incluir as mulheres, especificamente trans, que fazem parte integral da comunidade drag desde a sua génese. Mas não foi por isso que estas vozes online se levantaram. Foi pelo simples facto de esta vez ter acontecido um makeover com… mulheres.

O debate de mulheres ocuparem espaços gays tem vindo a ser muito frequente nos últimos anos. Disse gay por uma razão simples, porque muitos dos bares e discotecas estão desenhados para serem frequentados por homens gay. Cis e brancos, já agora. Há uns anos, as festas de despedida de solteira foram proibidas de acontecer em espaços gay na Califórnia. Isto porque havia algum abuso por parte das intervenientes dessas festas dos espaços em que se encontravam e das pessoas queer que lá trabalhavam, nomeadamente drag queens. Mas tudo isto é muito problemático quando generalizado, e há (demasiada) gente que defende que mulheres cis heterossexuais não deviam ocupar espaços queer. 


A importância da presença das mulheres na luta LGBTI e nos seus espaços esteve em discussão no Podcast Dar Voz A esQrever 🎙🏳️‍🌈, oiçam:


Partindo do princípio que o respeito pelos espaços seguros que ocupamos enquanto seres sociais é sempre vital, todo este debate é, e não há forma mais direta de o afirmar, simplesmente patético. Muitos de nós, homens gay, fomos propulsionados para a emancipação pelas mulheres das nossas vidas. Mães, avós, tias, professoras, artistas, amigas. E não preciso de lembrar a ninguém que todos nós veneramos divas, historicamente mulheres hétero que conquistaram um lugar central nas nossas histórias. São todas estas mulheres que queremos impedir de frequentarem os nossos espaços? As mesmas que marcharam ao nosso lado, limparam as nossas lágrimas, dançaram connosco a nova música da Ariana Grande? 

Não. Somos todos nós, homens gay, melhores e mais autênticos pela quantidade e qualidade inumerável de mulheres que nos apoiaram e continuam a apoiar. Precisamos delas quase diariamente. Provavelmente mais do que elas precisam de nós. A misoginia dentro da comunidade gay é algo que tem de ser abordado frontalmente e sem pudor quando se fala em Orgulho. Porque não há homofobia sem haver misoginia primeiro, essa é a raiz de todas as discriminações das pessoas LGBTI. E esta polémica estúpida em torno deste episódio de makeover de RuPaul’s Drag Race é sintomático disso mesmo. Ainda para mais tendo sindo um dos melhores episódios de que há memória e que não só mostrou que mulheres (todas elas) merecem a oportunidade de concorrer enquanto drag queens, mas ainda que as mulheres que nos ajudam a ocupar os nossos espaços também deles devem disfrutar. Ou querem mesmo expulsar a Michelle Visage da série e dizer-lhe que por ser uma mulher cis não pode ser uma drag queen? Pensem bem nisso e se continuarem a insistir diria para protegerem a jugular.  

Nota: Texto revisto pela Ana Teresa.


Por Nuno Miguel Gonçalves

I lived once. And then I lived again.

3 comentários

    1. Pedro Carreira – Portugal – Ativista pelos Direitos Humanos na ILGA Portugal e na esQrever. Opinião expressa a título individual. Instagram/Twitter/TikTok/Mastodon/Bluesky: @pedrojdoc
      Pedro Carreira diz:

      E tu a nós 🥰 #Pride

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