Modern Family – E se a nossa família fosse tão “normal” como as outras?

A série Modern Family chegou ao fim, depois de 11 temporadas. Das primeiras, multipremiadas e tão impactantes temporadas, chegou-se a uma fase de consagração estável e a alguma previsibilidade (embora eu tenha sempre permanecido uma fiel fã). Hoje, Dia Internacional das Famílias, faz sentido falar desta série, que tanta importância teve na representatividade LGBTI.

É certo que, perante os mais frequentes e bons conteúdos com temática LGBTI e personagens emblemáticas com identidades não-normativas, Modern Family passou a ser um clássico de família cujo impacto nessa matéria às vezes nos esquecemos. Na verdade, nunca até 2009 tínhamos visto um casal queer representado desta maneira. Cameron e Mitchell são um dos três polos familiares desta série e esse foi o seu grande legado, o da inclusão. Quer para a comunidade, que se viu representada numa série de primeira linha, quer para os conteúdos de televisão, que aumentaram a diversidade, e, sobretudo, para a grande maioria da restante população, que aí teve oportunidade de empatizar com um casal de dois homens com uma filha, “normalizando-o”.

Se as personagens Cam e Mitchell, assim como a sua dinâmica enquanto casal e a forma como são representados em determinados momentos, podem não ser consensuais dentro da própria comunidade, é mais difícil questionar a importância da sua visibilidade. No documentário Modern Farewell, exibido antes do último episódio, além da evidente apoteose emocional e elogio fervoroso à série, reúnem-se um conjunto de depoimentos, de criadores, atores e atrizes e equipa técnica, nos quais se torna evidente a importância da questão LGBTI na sua criação. O mote era simples: uma família com três núcleos distintos, uma aparentemente convencional e outras duas não normativas, todos no mesmo plano de importância. Essa premissa permitiu fazer da diversidade um importante motor da construção destas dez temporadas.

Mas o mais importante foi ver um casal de homens a adotar uma bebé, a lutar contra a homofobia dos seus próprios familiares e, às vezes, também a sua própria homofobia internalizada, a conquistar o direito ao casamento e finalmente a casar. Essa representação era inédita nestes moldes e surgiu num dos momentos mais importantes da luta pelo acesso ao casamento nos E.U.A. – afinal “eles” até nem são tão diferentes de “nós”.  Diria até que deu para mostrar que todas as famílias, sejam elas quais forem, são indiscriminadamente disfuncionais, carinhosas, próximas, amorosas e maníacas.

Cam e Mitchell não estão livres de estereótipo (mas quem está?), não são particularmente sexuais, são brancos e de classe média alta – estão longe de estar “ao nível” de outras personagens queer que se seguiram no panorama televisivo, mas foram pioneiros e, sem dúvida, que se tornaram símbolos da cultura pop. Sempre foram do mainstream e esse é, ao mesmo tempo, o seu maior defeito e a sua maior qualidade. Mas é enquanto qualidade que é relevante, pois colocou a representatividade LGBTI noutra esfera, e no plano das famílias ocupando um lugar paritário. A qualidade da série e da escrita tornaram as personagens reais, amáveis, gerando empatia em públicos ainda alheios a este universo.

Uns anos antes, tínhamos tido Tina e Bette no “The L Word” a ter uma bebé, mas sem o mesmo impacto no público dominante. Dois anos depois da estreia de Modern Family, em 2011, Callie e Arizona, da “Anatomia de Grey”, também tinham direito a ter a sua própria família com o nascimento da filha de ambas, Sofia. Outras séries como “Brothers and Sisters”, “The new normal” ou “The Fosters” seguiram-se a mostrar outro tipo de modelos não normativos, dando mais visibilidade às nossas famílias, que sempre existiram na sociedade. Mas agora de uma forma inclusiva e reconhecidas como o que realmente são, iguais na sua diferença, como todas as outras famílias.

Esse retrato “positivo” acaba por ser fundamental para o reconhecimento efetivo das nossas famílias reais, para a conquista de mais igualdade nos direitos, para mais visibilidade e inclusão, e torna-se ainda mais simbólico neste Dia Internacional das Famílias. Famílias há muitas, diversas e plurais, queremos vê-las cada vez mais representadas, e naquilo que mais importa: o amor.


As famílias modernas foram tópico de discussão no Podcast Dar Voz A esQrever 🎙🏳️‍🌈, oiçam:

Por ana vicente

Sobre Ana Vicente Ana Vicente é uma mulher lésbica, feminista e ativista pelos direitos LGBTIQ+. Nasceu em 1977 em Lisboa, cidade que habitou a maior parte da sua vida adulta, antes de se render à vida do campo na zona Oeste. Licenciou-se em Filosofia, que equilibra ouvindo canções dos ABBA. É copywriter e estratega de comunicação na ana ana, da qual é sócia-gerente (podem adivinhar o nome da outra sócia). É voluntária da ILGA Portugal desde 2015 e colabora com outras associações e movimentos ativistas sempre que pode e/ou é convocada. Escreve há vários anos para o projeto esQrever. Escreve há vários anos. Escreve.

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