2020 não está a ser aquilo que esperávamos. De todo. Mas entre quarentenas e isolamentos sociais estamos mais dependentes do que nunca de entretenimento. E numa época em que as pessoas LGBTI vêem os seus direitos ameaçados por políticas conservadoras oportunistas durante a pandemia precisamos mesmo de oásis. E não há nada como música para nos ajudar a encontrar comunhão quando parece que estamos mais isolados e sozinhos que nunca. Por isso aqui vão lançamentos recentes de pessoas queer para pessoas queer. Agarrem os earpods que vai ser uma bumpy ride.
E vamos já retirar o elefante alienígena cor-de-rosa do caminho. Chromatica é o sexto álbum de originais de Lady Gaga e depois de ameaças de adiamento indefinido devido à COVID-19, a Mother Monster decidiu comprar bilhetes interdimensionais para toda a gente disfrutar deste seu planeta onde a dor e o sofrimento são razões para celebrar essa parte integrante da nossa história. Este opus de bubblegum pop assentes no Eurodance dos anos 90 e 00 e uma produção milimétrica é um paradoxo do início ao fim. Naquele que é possivelmente o mais pessoal e emocionalmente traumático trabalho de Gaga até agora é também o mais frenético e incansável. Como se parar para refletir fosse demasiado doloroso e dançar fosse o único caminho para a salvação. Destaque para hinos do dancefloor como Sine From Above com Elton John, a vencedora clara da Eurovisão de 2020 que nunca aconteceu, Alice, 1000 Doves e claro, Rain on Me, o dueto com Ariana Grande que está a ser o maior sucesso de Gaga desde Born This Way. Mas Chromatica é um álbum para ouvir do início ao fim, recuperando o valor da experiência de ter uma narrativa coesa e uma história completa a contar e não um conjunto de singles isolados, como tem sido o caso das atuais princesas da pop como Ariana e Dua Lipa. Uma lição de purismo pop que decerto nos vai acompanhar, em alto volume, o resto do ano.
Chromatica muito me faz lembrar também do arrojo visual conjurado pela incomparável Grimes e 2020 viu um novo projeto da cantora finalmente surgir depois de meses de teasing. E não, não falo do seu primeiro filho, X Æ A-Xii, resultado da polémica relação com o mogul Elon Musk. Falo sim de Miss Anthropocene, outro álbum altamente conceptual e inspirado na forma como a imprensa a decidiu tratar como vilã nos últimos anos e desde a relação com o CEO da Tesla. Por isso criou um conjunto de canções com uma deusa robótica da mudança climática como pano de fundo num visceral ato de catarse. E vingança?
Mudando radicalmente de tom, passamos para o indie pop luminescente de Perfume Genius, um dos grandes camaleões do panorama musical atual. Mike Hadreas foi sofrendo várias metamorfoses ao longo da sua carreira, de jovem twink assustado e isolado a uma queen fabulosa pronta para domar qualquer palco. Ultimamente tem vindo a integrar esses dois lados da mesma moeda num homem queer que está a reconhecer o valor da sua própria maturação. Set My Heart on Fire Immediately é o luxuriante e magnético culminar de anos de evolução artística na forma de reconhecimento do seu atribulado passado, marcado por bullying, homofobia e dependência de drogas, problemas transversais a qualquer homem gay ou queer a viver neste planeta.
Como Owen Pallett, por exemplo, o violinista e compositor anteriormente conhecido como Final Fantasy e um dos elementos não-fixos da banda canadiana Arcade Fire. Desde que despiu as vestes de Final Fantasy e começou a usar o seu próprio nome que Pallett não deixou margens para dúvidas que não se ia mais esconder por detrás de qualquer máscara e este Island é um exemplo intemporal de honestidade e reconhecimento pessoal através da música. Pela primeira vez Pallett deixa o seu violino para segundo plano e deixa o piano e as próprias canções contarem as suas histórias. E Owen conta a sua novamente através de Lewis, que já conhecíamos de Heartland, agora isolado numa ilha. Um manifesto sobre o envelhecimento e a melancolia da nostalgia que tem pontuado muitas das minhas noites.
Levantando bruscamente as RPM passamos para Charli XCX, a menina querida do dance pop alternativo que vem demonstrar com How I’m Feeling Now que nem a quarentena a vai impedir de ser a mais prolífica de todas as suas artistas conterrâneas. Escreveu, compôs e produziu todo este álbum em quarentena e se a leveza pop que a sedimentou no panorama LGBT continua lá, este é certamente o mais introspetivo de todos os seus trabalhos, claramente secundado em canções como Enemy ou Forever. A sua colaboradora de Gone, Christine and the Queens, também aproveitou o início pandemia para lançar um EP poliglota chamado La Vita Nuova, um melancólico tratado sobre uma identidade europeia cada vez mais ténue. Também parte da lista de colaboradoras de Charli XCX é Kim Petras, a sensação pop alemã e uma das poucas mulheres trans a produzir música sem fronteiras. Já tinha lançado a melancólica e incrível Reminds Me Of You, mas há pouco tempo ofertou Malibu ao mundo, a ode veraneante à música disco que precisávamos para sair da apatia quotidiana.
E não, não vou terminar estas sugestões de audição de música queer e deixar Portugal para trás, especialmente quando tivemos no início do mês o single synth pop Só a Pensar dos D’alva, uma balada perfeita para ouvir e mais uma noite de isolamento, que bebe muito da música electronica e do soul do início dos anos 80. Deliciosa. E vocês? Que música e artistas queer vos têm ajudado a manter a sanidade nesta época tortuosa? Por enquanto ficam aqui os nossos destaques em jeito de playlist.
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