Destemidas: Provedor da RTP mandou retirar série juvenil que foca na história de mulheres que combateram preconceitos depois de receber queixas preconceituosas

Se não fosse tão triste como o título acusa, este caso pareceria uma rábula de um Diácono Remédios, uma figura certamente tão saudosa para algumas pessoas. Pessoas essas, portanto, que enviaram queixas ao Provedor da RTP sobre a série juvenil Destemidas, Les Culottées, no original, acusando a série de abordar temas como a interrupção voluntária da gravidez, a homossexualidade, o feminismo, o divórcio e a religião. Ou seja, temas e direitos que estão consagrados na lei portuguesa e que fazem parte da história democrática do país. Atente-se que estas são temáticas devidamente adequadas ao público juvenil, o público-alvo da série de livros assinada por Pénélope Bagieu que deu origem a vários episódios de televisão.

Destemidas, além de ter recebido vários prémios internacionais, foca-se na partilha de histórias verídicas de mulheres que combateram o machismo e o preconceito social. Ora, não deixa de ser especialmente irónico e preocupante que estas mulheres destemidas foram assim silenciadas por um Provedor, Jorge Wemans, que não conseguiu ver além das queixas preconceituosas que recebeu.

Pergunto, que peso teve na sua decisão a luta contra os estereótipos de género que a série aborda? Que peso teve na sua decisão a liberdade e a igualdade conquistada pelas mulheres que esta série aborda? E a visibilidade de mulheres lésbicas e famílias arco-íris em pleno mês do Orgulho LGBTI? Que exemplo dá esta decisão ao não permiti-las serem um exemplo para as crianças? Onde está a liberdade, onde está a igualdade?

Estas são realidades que importam ser contadas, pois desmontam aquilo que muitas vezes nos é socialmente ensinado e a RTP, como canal público de televisão, tem aqui um papel fulcral para não perpetuar os preconceitos e os ódios que estas mulheres combateram nas suas vidas. Para mostrar, de forma didática e adequada à idade do público do Zig Zag, que estas pessoas e estas famílias também existem, também são válidas e dignas de amor.

A RTP, que tem feito um ótimo trabalho de inclusão em diversas das suas áreas, acaba por ser traída por um Provedor que, após equacionar o peso das queixas que recebeu, decidiu desequilibrar a balança e retirar um produto que, se algumas pessoas o acham ‘sensível’ ou ‘fracturante’, estas são meras máscaras eufemísticas para o preconceito, a misoginia e a homofobia.

Esperemos que a decisão de retirar a série do ar e do site da RTP seja revertida em breve, porque a RTP ainda vai a tempo de não ceder definitivamente a conservadorismos bacocos, mas especialmente porque precisamos de muitas mais mulheres destemidas como estas.

Atualização 26 de junho 2020:

A RTP voltou atrás na decisão, tomando assim um caminho sério sobre a validação destas histórias. Depois de ter retirado da RTP Play no passado dia 25 o episódio da série infantil Destemidas dedicado à vida de Thérèse Clerc, a RTP voltou a publicar, depois de críticas à sua retirada, a série no seu portal. No entanto, retirou a série da área dedicada ao público infantil, Zig Zag Play.

A Diretora da RTP2, Teresa Paixão, esclareceu na madrugada de sexta-feira que a retirada do episódio não era definitiva: “O episódio sobre Therese Clerc foi temporariamente suspenso do espaço ZiG Zag porque reconhecemos que a linguagem utilizada no que diz respeito ao aborto não era a mais adequada para o público alvo ( 10-13 anos ) e voltará assim que estiver refeita a dobragem“.

Por uma questão de transparência, até porque nas justificações do Provedor e da Diretora ficam claras as piruetas argumentativas das últimas horas, será igualmente necessário perceber as mudanças da nova dobragem. Após pressão, que ironicamente deu forte visibilidade à série Destemidas, a RTP esteve bem. Ish.