
Fez há dias, mais precisamente no dia 26/junho, 1 ano que comecei a escrever este texto, estava no World Pride em Nova Iorque, a celebrar a igualdade e a conquista pelos direitos das pessoas LGBTI. Por diversos motivos, que incluem o turbilhão de emoções que o texto me induziu, mas também por razões mais prosaicas, acabei por não o terminar. Está, pois, na altura de lhe dar a luz do dia.
Arrumações profundas ou mudança de casa são sempre (boas) oportunidades para se descobrir preciosidades mais ou menos surpreendentes, mais ou menos indesejáveis. Algumas vezes catárticas e quase sempre relevantes para nos colocarmos em ângulos perspetivos que ajudam a arrumar, além de objetos, também ideias, (in)certezas, narrativas ou identidade(s).
Foto: Nuno Gonçalves, 2005
Aconteceu-me há pouco tempo (agora já fez um ano), enquanto tropeçava em caixas de resmas com fotografias, descobrir um envelope daqueles onde vinham as (quantas vezes boas, muitas vezes más) revelações em papel fotográfico, com duas fotografias da minha primeira marcha do orgulho, se é que me é permitido, a bem do rigor, poder chamar-lhe desta forma. As fotos, de qualidade bastante mediana (adjetivando aqui o substantivo, entenda-se) mostram a Marcha do Orgulho de Lisboa em 2005, a descer a Avenida da Liberdade, o bandeirão da ILGA Portugal e algumas pessoas vistas da margem. O observador na margem. É isto, o observador primeiramente na margem.
Mais concretamente, uma das referidas fotos não é explícita, isto é, não se diria que é de uma marcha lgbti. Tem o Paulo Jorge Vieira, que tinha conhecido em Coimbra, dos tempos do início do meu coming out (ainda decorre) e que teve um papel importante nesse mesmo coming out. A outra foto mostra o bandeirão da ILGA, como já referi, segurada por (só agora, ao escrever este texto, reconheci) a Joana Almeida, com quem viria a trabalhar em projetos da ILGA Portugal, muito anos depois.
Foto: Nuno Gonçalves, 2005
Um detalhe que não deve passar despercebido aqui, talvez até o mais significativo, é o facto de que o envelope continha, além destas duas fotografias, uma impressão no mesmo papel fotográfico, de um mosaico das fotos daquele rolo de 24. E vejo que, das 24, deixei neste envelope de papel apenas estas 2, o que significa que mostrei a amigos, amigas e família as outras 22. Eram as fotos que se podiam mostrar … eram as fotos que eu podia mostrar … pelo menos sem sentir vergonha.
Praticamente passado o mês de junho, também chamado de mês do orgulho, em que se repetem por muitos locais, ainda pontuais contudo, as marchas do orgulho lgbti, também conhecidos como prides, e em que se celebraram, à data em que escrevi esta parte do texto, os 50 anos das revoltas de Stonewall Inn (ver aqui), eu recordo a minha primeira marcha do orgulho, volvidos 14 anos (agora 15), embora ainda com pouco orgulho, nessa altura de lógica do armário ou, melhor dizendo, numa altura de lógica do medo e da vergonha.
Foto: Nuno Gonçalves, 2005
Foi em 2005 e eu era então um jovem – ainda sou 😉 – com 28 anos, recém-chegado (meros 10 meses) à aceitação (bem longe de ser plena) da minha própria orientação sexual. Vivia em Coimbra, o que não facilitava a vida a quem quisesse assumir a sua orientação sexual. A cena da cidade era dos masculinos discretos e das lésbicas invisíveis. De certo modo, Coimbra ainda não perdeu totalmente esta identidade, estando, mal fora, já muito melhor.
O que me interessa neste texto não é tanto discutir a minha evolução pessoal, que de armariado passei a cool with this e daí a ativista, mas sobretudo discutir dois aspetos. Por um lado, o poder das marchas do orgulho e, por outro, aquelas duas fotos que ficaram escondidas com o mosaico das restantes, para que família e amigos/as não as pudessem ver e eu não tivesse dificuldade em as explicar.
A forma como aprendemos desde cedo a comportarmo-nos, homens ou mulheres, com enorme pressão para o que está “certo” (compatível) ou “errado” (incompatível), a desempenhar os papéis de género bem definidos (que não respeita, acima de tudo, as pessoas trans), num quadro vincadamente sexista, funciona como uma tatuagem mental para todos os seres humanos. Está lá sempre. Para alguém que tem uma orientação sexual não dominante, instala-se o medo e a vergonha. Instala-se a dúvida (sou normal? há mais pessoas como eu? sou só eu aqui?) e aprende-se a esconder. Aprende-se a calar, ou a dominar os instintos. Aprende-se a vestir uma pele diferente. Aprende-se a não deixar transparecer o que acontece por dentro.
É por isso que a visibilidade, das marchas do orgulho ou de tantas outras manifestações e gestos, é tão importante. Ter orgulho em ser-se quem se é e nas décadas de conquistas que nos levaram onde estamos hoje, com tanto ainda para alcançar, mas com o entusiasmo de quem está a conquistar e não vai parar de lutar pelo muito que ainda falta.
Naquele primeiro dia em que o observador esteve na sua primeira marcha, mas à margem, a assistir, sem participar, já estava de certa forma a participar, e o empoderamento já estava a começar a sentir-se. O observador que naquele dia fui eu e certamente tantas outras pessoas que, observadores e observadoras, pululavam pelas margens da marcha, naquele e todos os anos, saem sempre dali com mais poder, e mais coragem para, um dia, pisar o desfile.
E esse caminho é para a vida. Não termina nunca. A tatuagem mental está lá e estará sempre. O que não nos impede de nos sentirmos livres e empoderados e empoderadas, para que possamos mostrar aos amigos e amigas, e à família, todas as fotos das nossas vidas, e não apenas a parte “respeitável” – não me refiro a fotos da intimidade ;).
Foto: Nuno Gonçalves, 2019 (as grades da Marcha do Orgulho de Nova Iorque são uma grande distinção para a Marcha do Orgulho de Lisboa. Muito melhor sem grades)
O empoderamento destes momentos é contagiante. E é por isso que em 2005, na Marcha do Orgulho de Lisboa, celebraram o orgulho umas escassas centenas de pessoas e em 2019 foram da ordem das dezenas de milhares. E porque em 2020, não se pôde realizar, dada o risco de agravamento da situação epidemiológica provocada pelo vírus covid-19, fica um vazio, fica uma lacuna difícil de preencher, porque nos habituámos a ir ali buscar energia para o ano todo.
Nada do que disse até aqui é novo ou não fez já correr muita tinta e muitos pixeis. Então, por que escrever este texto?
Escrevo, reescrevo de certa forma, este texto, porque este ano, mais do que nunca, precisamos de ir buscar as pessoas que iriam estar na marcha, à margem, ainda com pouquinha (mas estoica) coragem, e dizer-lhes … “tenham orgulho. Sejam quem são … sigam a verdade e sejam felizes. Venham connosco. Sempre…”.
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