Disclosure e a Representação das Pessoas Trans nos Ecrãs

Nós somos o que vemos e quem vemos. E é na representação de pessoas como nós nos média que encontramos espelhada pela primeira vez a nossa identidade. Mas esta visibilidade, tão procurada e crucial para as pessoas LGBTI, vai sofrendo várias transfigurações ao longo dos anos e décadas. Porque se formos procurar essa representação das nossas pessoas e de nós mesmas ela é historicamente problemática e enviesada para um estereótipo nocivo, penalizante e muitas vezes fatal. E nada é mais pervertido do que a representação das pessoas trans na televisão e cinema.  Isso é retratado no novo documentário da Netflix, Disclosure, produzido por Laverne Cox e realizado por Sam Feder, onde vemos a evolução de como a sociedade olha para as pessoas trans através do grande e do pequeno ecrã. 

Pessoas trans existem no cinema desde que ele existe, basta procurar. Mas desde cedo que essas imagens são deturpadas em prol ou da comédia ou do drama. A primeira imagem que eu, criança dos anos 90, tenho de uma pessoa trans não podia ser mais problemática e assustadora. Lembro-me perfeitamente de ver na televisão O Silêncio dos Inocentes e ficar aterrado com a depravação da sede de sangue de Hannibal Lecter mas ainda mais com a monstruosidade de Buffalo Bill, um assassino em série que retirava a pele das suas vítimas, todas raparigas jovens, para construir um vestido para que se pudesse colocar, literalmente, na pele delas. Uma representação absolutamente desumana do que é ser, possivelmente, uma mulher trans: um homem quer ser mulher mas não é nem pode ser.

O papel das pessoas LGBTI enquanto vilãs sempre foi prevalente no cinema de terror e suspense. É difícil olhar para Alfred Hitchcock, por exemplo, e não encontrar em quase todos os filmes um homem gay, uma mulher lésbica ou pessoas trans e não binárias enquanto assassinos e assassinas. Basta olhar para Psico, onde o doce Norman Bates acaba por se revelar um psicopata que mata mulheres por quem se interessa transvestindo-se enquanto a sua falecida mãe. E Dressed to Kill, herança de Hitchcock por Brian DePalma, tem exatamente a mesma problemática de transvestismo enquanto ameaça ao equilíbrio normativo de género e, simultaneamente, da segurança das pessoas “ordinárias”. 

E mulheres trans, se não são descaradamente vilãs e assassinas, são, inevitavelmente prostitutas que acabam mortas por crimes de ódio. Os primeiros papéis em televisão de atrizes trans como Candis Cayne, Alexandra Billing ou Trace Lysette, foram estes mesmos, reproduzindo um ciclo vicioso quase centenário. E se todas as representações de mulheres trans são estas não existe forma de uma pessoa trans ver um reflexo futuro seu no Mundo sem ser neste contexto, limitando quaisquer sonhos e aspirações que possam ter. Até porque esse mesmo Mundo não consegue as pessoas trans de outra forma e como tal não lhes permite ser mais que isso: seres perversos sem moralidade que merecem ser mortos. 


Disclosure e a representação das pessoas trans no pequeno e grande ecrãs estiveram em discussão no Podcast Dar Voz A esQrever 🎙🏳️‍🌈, oiçam:


Se a representação do que é ser trans era normalmente espelhada nesta corrução do que é ser uma mulher trans, por outro lado os homens trans não tinham qualquer representação. Não preciso de me esforçar muito para me lembrar do primeiro homem trans que vi em televisão porque essa representação não tem mais que cinco anos. Porque a ameaça ao sistema vigente parte ao desafio da masculinidade por parte das mulheres trans, que escolheram perder o privilégio e por isso merecem ser mortas e vilanizadas. Enquanto homens trans, segundo o patriarcado, está a tentar procurar – falhando, obviamente – o que é o arauto mais poderoso dos papéis de género: o homem. Outro paradoxo extremamente pérfido e repulsivo. 

Disclosure discute todos estes temas indo a fundo na forma como a representação positiva das pessoas trans é extremamente recente e como o efeito da mesma ainda não tem um efeito muito percetível na sociedade. Só que a realidade é que a presença de pessoas trans, particularmente em televisão, a contarem as suas próprias histórias está a revolucionar a forma como o mundo as vê. Dentro e fora dos ecrãs. Porque não foi antes de 2014 que tivemos Laverne Cox, agora uma das maiores ativistas da nossa comunidade, na capa da Time Magazine assinalando o ponto de mudança para as pessoas trans no mundo do entretenimento, depois da humanização incrível que fez da personagem de Sophia Burset em Orange is the New Black. Tal permitiu que tenham começado a existir obras revolucionárias como Sense 8 das irmãs Wachowski ou Pose de Ryan Murphy. Se o próprio Murphy tinha demonstrado um grande preconceito na caracterização de mulheres trans em Nip/Tuck, agora redime-se com a entrega das rédeas a elas próprias. Mulheres. Trans. Negras. A contarem a História que a elas lhes pertence e assim à sua comunidade, dando uma oportunidade à mesma de se rever pela primeira vez na pele de alguém que não é nem prostituta, nem assassina. Nem invisível. Nunca mais. A revolução é agora.