“Se atores e atrizes vestem a pele das personagens que desempenham, porque é que Halle Berry recuou na interpretação de um homem trans?“
Esta foi uma das questões que vi como reação à notícia de que Halle Berry tinha desistido do papel de um homem trans no grande ecrã. Primeiro há que entender que esta discussão, o da representação de pessoas trans pelas próprias no cinema e em televisão, ainda é tão recente que a própria oscarizada atriz, numa entrevista, ao comentar que estava a preparar-se para o papel, trocou várias vezes o género do homem trans que pretendia vestir a pele. Mas nem é este o problema aqui em causa, porque a atriz, e ao contrário de outros casos, reconheceu o erro e pediu desculpa por essa falha. Kudos to her!
A questão é mais complexa que um erro não intencional, mas basta perceber o contexto histórico da representação das pessoas trans na cultura mainstream nas últimas décadas. Antes de haver esta preocupação na representação de personagens assumidamente trans (o que quase sempre torna esse um dos pontos centrais da história da personagem) por atores e atrizes trans, eles eram simplesmente invisíveis e elas eram remetidas invariavelmente a profissionais do sexo assassinadas ou a punch lines humorísticas, desumanizando estas pessoas e as suas histórias. A presença nos últimos anos destes atores e destas atrizes (e argumentistas, produtoras e realizadoras) trans permitiu precisamente que pudéssemos contar as suas histórias de forma humana e dar-lhes a possibilidade de emancipação, além dos pequenos papeis que estavam invariavelmente destinadas a representar.
Já perdi a conta das vezes que fiz de prostituta e fui assassinada diante de uma câmara! – atriz trans no documentário Disclosure.
Aliás, houve uma altura intermédia, em que as histórias de pessoas trans começaram a ser contadas, mas interpretadas, geralmente, por atrizes cisgénero a representar homens trans. Boys Don’t Cry talvez sendo o maior exemplo no final da década de 1990 e que deu o Oscar a Hilary Swank, mas também mais tarde Jared Leto e Eddie Redmayne, igualmente oscarizados pelos respetivos papeis de mulheres trans, num historial milimétrico que durou mais de 40 anos de celebração de um ator ou atriz cisgénero a desempenhar uma pessoa trans.
A notícia de Halle Berry e a importância da representação de pessoas trans no pequeno e grande ecrãs estiveram em discussão no Podcast Dar Voz A esQrever 🎙🏳️🌈, não percam:
Mas há ainda uma outra diferença, a diferença de como são vistos fora do ecrã. “O público encara as mulheres trans como homens maquilhados com cabelo bonito e isso é reforçado sempre que vemos fora do ecrã um homem que fez de mulher trans” [Jen Richards, atriz e autora], havendo casos em que mulheres trans foram equacionadas para papeis de mulher, mas acharam-nas “demasiado reais” para o papel de uma mulher trans, tendo sido escolhido um homem cis para o desempenhar. E isso perpetua a ideia no subconsciente social de que as mulheres trans não são mulheres, mas homens vestidos de mulher e vice-versa. E perpetuar essa ideia errada serve de gatilho para aqueles homens que, vendo personagens de mulheres trans a serem desempenhadas por homens cis, vêem ali uma justificação para trazer a sua transfobia e homofobia.
Ora, isto não acontece quando as pessoas trans se representam a si mesmas. A Laverne Cox, por exemplo, é tão mulher à frente de uma câmara como fora. “Quando vemos estas mulheres fora do ecrã como mulheres, isso desfaz a ideia de que são homens mascarados.“
Sendo as mulheres trans um dos grupos historicamente mais perseguidos, violentados e assassinados no mundo, estes são fatores que contam e que importam atenuar.
Então, porque é que Halle Barry recuou na interpretação de um homem trans? Provavelmente, a resposta mais simples é também a mais óbvia: pela mesma razão que não vemos, por regra, mulheres a representar homens. E, se pelo caminho ajudarmos à humanização de um grupo ainda hoje amplamente menosprezado, tanto melhor. Obrigado, Halle!
O documentário Disclosure sobre a representação das pessoas trans na televisão e cinema esteve em destaque no Podcast Dar Voz A esQrever 🎙🏳️🌈, oiçam:
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