Orgullo, por Pedro Leitão

Depois de Levitating, hoje voltamos a publicar um conto da autoria de Pedro Leitão, uma história de expectativas de um Orgulho que nem sempre nos surge, de uma fuga da realidade que a pandemia nos impôs em que dois rapazes, Rafael e Fábio, tentam viver e sobreviver a todos estes novos desafios partilhados no cimentar de uma relação. E como reagem eles perante estas circunstâncias quando a homofobia lhes bate à porta. Mais uma vez, vale a pena relaxar, deixar uma música de fundo como banda-sonora e ler esta história de amor e orgulho:

Estava já no último quilómetro. Seleccionou na playlist a faixa apropriada para a chegada triunfal à meta. Ao soarem as primeiras vibrações electrónicas, sincronizou a cadência da corrida com a batida em crescendo e iniciou a aceleração final em direcção ao viaduto. Tinha as três vias de rodagem só para si, não havia qualquer sinal de movimento, pedonal ou rodoviário, em toda a alameda, pelo que o passo rápido de Rafael cortava a serenidade da tarde com o estrondo de uma locomotiva. Naquele final de dia primaveril soprava uma brisa morna que lhe resfriava a transpiração do corpo, permitindo-lhe manter o ritmo cardíaco sob uma pressão controlada. Estava nos últimos minutos de um treino que já durava por uma hora e meia e que incluíra um intenso plano de exercícios distribuídos por várias estações naquele vasto ginásio ao ar livre. Rafael forçava a máquina do corpo ao limite da sua potência, que todos os dias dilatava ao retirar alguns segundos ao seu recorde pessoal. Durante as horas de esforço físico diário, que cumpria com uma religiosidade monacal, a sua imaginação descolava da pista da alameda e ia invariavelmente aterrar num lugar e numa data precisos. Como acontecia naquele instante, em que a música entrava numa espiral sinfónica prestes a explodir no refrão. Fechou os olhos e disparou para o sprint final na pista do viaduto com a mesma energia com que se viu a dançar no meio da Gran Via, entre o exército de torsos bronzeados em incessante movimento, tão nitidamente próximos que, estendendo o braço, tinha a certeza de alcançar o rapaz que marchava à sua frente, sentindo-lhe a pulsação no peito firme e reluzente de suor.

Ao reabrir os olhos reparou num carro que vinha na sua direcção. Saltou rapidamente para o separador central e subiu para uma das grossas juntas de cimento azul onde se atam os cabos que suportam o tabuleiro. Como um marinheiro à proa do navio, restabelecia o fôlego enquanto admirava o grande desfiladeiro negro da auto-estrada deserta que mergulhava sob os seus pés. O asfalto era cortado pelo ocasional par de faróis errático que parecia perdido naquele oceano negro. Ao fundo, o rio, para onde os bandos de gaivotas sobre a sua cabeça se dirigiam, fintando o alto mastro onde a tensão dos cabos se fundia com a rigidez do betão armado. À direita, o sol irradiava na hidra de carris de ferro da estação, dourando-os como correntes de levar ao peito. Rafael lembrou-se da monumentalidade de Atocha. Seria dali que partiria em Julho, junto com Fábio e mais um milhão de desconhecidos, cantando em uníssono o hino que ainda lhe regulava o batimento cardíaco.

A quién le importa lo que yo haga
A quién le importa lo que yo diga
Yo soy así y así seguiré
Nunca cambiaré

Nas férias em Madrid cinco anos antes, na que veio a ser a derradeira tentativa de salvamento da relação dos pais, Rafael chegara a termos com a sua orientação sexual. Sabia agora, em retrospectiva, que o seu coming out uns meses depois daquela viagem, poucos dias após completar dezoito anos, tinha sido a estocada final num casamento irremediavelmente condenado. Numa tarde particularmente tensa, depois de uma lamentável discussão à vista de todos no Parque do Retiro, os pais tinham recolhido à residencial onde estavam hospedados. Rafael não estava para desperdiçar outro dia de férias com mais um episódio de disfuncionalidade conjugal, pelo que decidiu continuar sozinho o seu passeio pela cidade. Tudo lhe parecia de uma dimensão extravagante, os prédios, o trânsito, as multidões nos passeios, as montras das lojas, os anúncios luminosos dos teatros. Por uns instantes lembrou-se de filmes e de séries que tinham por cenário as avenidas de Manhattan. Haveria alguma filiação entre aquelas duas cidades que lhe pareciam tão semelhantes? Supôs um parentesco entre o anjo da fonte de Central Park e aquele que tinha agora à sua frente, no topo do edifício Metropolis. Parecia que olhava directamente para si: queria dizer-lhe algo, revelar-lhe um qualquer segredo sobre Madrid. Olhou em redor. À esquerda, reconheceu do guia turístico o edifício do Círculo de Belas Artes, com o seu elegante torreão. Atrás de si, a majestosa Cibeles, confortavelmente montada na sua carruagem puxada por leões alados, e a Gran Via à sua frente como pista de descolagem para a deusa. Mas o anjo continuava a interpelá-lo, instando-o a optar por um caminho mais adequado à sua condição terrena.

Reparou então numa rua que não destoaria se fosse trasladada para o centro da sua própria cidade. Entrou por ela, percorreu-a até ao final, virou à esquerda e logo à direita, e deparou-se com uma série de cartazes onde foi novamente interpelado pelo divino: vários homens exibiam os seus corpos maravilhosamente musculados sob um fundo vermelho e azul, anunciando a festa onde aqueles seres mitológicos fariam a sua aparição. Rafael continuaria a encontrar a mesma publicidade sedutora à medida que se embrenhava pelas ruas. Avançando pelo interior do bairro, começou a descobrir bandeiras arco-íris nas varandas, nas montras das lojas, coladas nas paredes dos prédios ou em cordões sobre os passeios. Os bares, que àquela hora começavam a montar as esplanadas, tinham nomes que fizeram corar a sua sensibilidade puritana. As lojas de roupa vestiam os manequins com t-shirts demasiado justas e calções demasiado curtos. Numa sex-shop reconheceu vários adereços que já vira em filmes porno, expostos despudoradamente à vista de todos os que passavam na rua. Aproximou-se e espreitou para o interior, um vastíssimo dispensário de jockstrapps, dildos e cock rings, arneses de cabedal, preservativos e lubrificantes, DVDs, revistas, cartazes e as inevitáveis bandeiras arco-íris. 

Rafael, no armário consciente das insidiosas leis que lhe regulavam o desejo, estava fascinado com aquelas ruas. Sabia da existência de bares e de lojas orientadas para o público gay na sua cidade. Já passara em frente a alguns desses estabelecimentos sem, claro, lá ter entrado. Mas naquele bairro acomodavam-se à vida do quotidiano com toda a naturalidade, e não como algo que se cose à margem. Sentiu-se numa espécie de Disneyland construída à medida da sua atracção, mas logo se lembrou de que ninguém vivia na Disneyland original. Seria tudo aquilo artificial?

Chegou a uma praça onde as esplanadas dominavam quase todo o espaço, fervilhando com a conversa e o movimento de um mar de gente que aproveitava o final da tarde quente para um copo com os amigos. Ficou absolutamente encantado. A timidez que sentira até então abandonou-o e quis imediatamente integrar-se naquele ambiente. Sentou-se numa das poucas mesas livres e pediu uma Coca-Cola. Inspeccionou atentamente a praça e pode identificar os turistas que, à sua semelhança, permaneciam absortos no movimento em seu redor. Numa mesa ao canto, dois homens de meia-idade com camisas floridas e um spaniel obedientemente estacionado aos pés partilhavam flamejantes cocktails e admiravam os rapazes mais musculados que saiam pelas escadas do metro. Noutra mesa, um grupo de seis rapazes espanhóis conversavam e riam alto. Pelas frases que conseguiu apanhar, trocavam histórias sobre uma viagem recente (Berlim? Milão? Não conseguiu perceber…). Eram todos deslumbrantes. Rafael entregou-se ao seu habitual e secreto jogo erótico, avaliando-lhes os atributos físicos para eleger finamente um — e apenas um, era a regra fundamental — que daria entrada no seu harém platónico onde seria impiedosamente subjugado aos seus apetites sexuais; dada a excepcionalidade daquela situação, acabou por escolheu três, e logo desatou a inventar complexas combinações arquitectónicas para acomodar a sua luxúria em rápida expansão. Na mesa ao lado, duas raparigas com forte sotaque americano tiravam selfies quando o empregado chegou com mais dois mojitos. Num espanhol catastrófico, pediram uma foto com ele. Elas contaram-lhe que já viajavam há um mês pela Europa, em interrail, e que aquele era definitivamente o sítio mais divertido por onde tinham passado. «Pues, Chueca es genial», ria-se o empregado, encolhendo os ombros. Rafael confirmou aquele nome na entrada da estação de metro. Voltou a atenção para a mesa dos rapazes espanhóis, onde aquela frase provocara uma gargalhada geral e dera o mote para entoarem, entre brindes e sorrisos cúmplices, uma melodia popular.

Y en el Orgullo vente a bailar
Aunque tú seas heterosexual
Pues te invitamos a nuestra fiesta
¡Chueca es genial!

Tornou-se num dos seus mais preciosos mantras. No processo de emancipação pessoal de Rafael, a visita à Chueca converteu-se num ponto de viragem. No regresso a casa, embrenhou-se virtualmente nas ruas, nas histórias, na vida do bairro, descobrindo uma dimensão fantástica que estava a apenas cinco horas de carro ou quarenta minutos de avião da sua cidade, e que contrastava clamorosamente com a enfadonha narrativa que ainda matinha perante a família e os amigos, sem saber bem porquê. Madrid mostrou-lhe a inutilidade desse esforço e a radiosa alternativa de que dispunha. Ao entrar na maioridade, anunciou a sua verdadeira orientação sexual, o que precipitou o desenlace do casamento dos pais. O primeiro ano da sua nova vida fora do armário esteve, no entanto, longe de se revelar o desfile de música e purpurina que ele imaginou.

Consumado o divórcio, foi viver com a mãe para a casa da avó, um segundo andar decorado com fendas e manchas de humidade nas paredes, e um odor a óleo de motor que se entranhava na pele, proveniente de uma oficina nas traseiras do edifício. A separação e o progressivo afastamento do pai tinham deitado por terra o ingresso na faculdade. Existia agora a necessidade de juntar ao exíguo salário de assistente administrativa que a mãe trazia para casa qualquer rendimento que Rafael pudesse obter. Procurou um emprego temporário que, inevitavelmente, se prolongou para além do desejado prazo de validade. Começou a trabalhar numa loja de telecomunicações no shopping mais perto. Foi lá que conheceu Fábio, enquanto deambulava pelo Grindr na sua pausa de almoço. A identidade do rapaz de corpo magro fotografado na praia que lhe aparecia na foto da aplicação descobria-se entre o regimento de funcionários do hipermercado no piso inferior ao seu. Rapidamente se tornaram nos melhores amigos.

Com regular frequência, Rafael falava-lhe embevecido daquela breve odisseia pelo centro de Madrid. Nos minutos antes de adormecer, imaginava-se morador daquele bairro mágico, ficcionando rotinas e encontros de vizinhança, como uma personagem do The Sims, carregando sobre a cabeça, em vez do diamante verde, um cintilante arco-íris. Depois de se ter libertado da clausura monocromática em que vivia, Fábio tirou-o do encantamento solitário em que o amigo se refugiou naquele ano triste e mostrou-lhe como a sua cidade se confessava surpreendentemente queer sob aquele espesso véu de convencionalidade. Rafael espantava-se com as revelações que Fábio lhe oferecia, reconhecendo os indícios, que sempre ali tinham estado, mas sobre os quais era agora projectada uma luz denunciadora das suas verdadeiras cores. Foi com Fábio que pisou pela primeira vez um bar gay, onde, nessa mesma noite, deu o seu primeiro beijo a um rapaz. Como todas as primeiras paixões que são consumadas depois de assumir uma nova pele, foi um affair intenso, breve e não reciprocado. Como sempre acontece também, o desgosto da ruptura foi tão amargo como rapidamente ultrapassado. No geral, aqueles primeiros meses foram felizes entre amigos que se faziam, alguns que se mantinham regulares, outros apenas lembrados por uma breve passagem da qual não se guarda rancor pela sua transitoriedade. Participavam no circuito da noite gay, sobretudo às sextas quando a festa era mais jovem, mais pop, mais efusiva ou, num termo que Rafael popularizou entre o grupo, mais petardea.

Os amigos achavam graça ao proselitismo de Rafael. Quando lhes apresentava as suas descobertas musicais e o ouviam falar das covers mariconeas da Kika Lorace, ou das baladas electrónicas em prosa delirante da La Prohibida, ou das coplas e sevilhanas barbudas da Nacha La Macha, não evitavam a comparação com as suas divas predilectas, invariavelmente mais populares, mas não deixavam de reconhecer que as canções das drag queens espanholas introduziam sempre uma inebriante receita para a fiesta. Uma noite de inverno em que se tinham reunido num bar para um copo antes de “saírem a perrear”, Rafael anunciou que decidira ir a Madrid no Julho seguinte, altura em que a capital espanhola acolhia o World Pride, o maior evento LGBT do mundo. O seu entusiasmo era contagiante e depressa o grupo embarcou na proposta, começando a delinear os planos e a organizar-se para a viagem. Tudo se preparava para aquela semana em que Rafael se encontraria no epicentro daquele terramoto gay, em que a energia de dois milhões de pessoas dançando livremente os hinos do Orgullo por todo o sistema rodo-vascular de Madrid, com a Gran Via como artéria principal e as ruas de Malasaña, La Latina, Lavapiés, Huertas como órgãos vitais desse organismo do qual a Chueca era o sistema nervoso central, emitiriam ondas de choque que se repercutiriam pelo globo e por todo o espaço sideral, alcançando as manas intergalácticas nos sistemas planetários mais longínquos.

Mas, nesse ano, o Universo decidiu de outro modo. No correr dessa Primavera, a sua avó adoeceu repentinamente. Os planos ficaram em suspenso e, perante o soturno diagnóstico, logo terminantemente adiados. Mãe e filho revezaram-se no auxílio à velha senhora cuja disposição para permanecer neste mundo se ia esvanecendo com os dias. Não sobreviveu ao Verão e o luto impôs-se até ao final do ano. Entre o emprego e as horas passadas em casa com a mãe, profundamente abalada com a morte, os almoços com Fábio no shopping serão para Rafael como uma corrente de flutuadores que lhe permitirão cruzar os dias inundados de tristeza e monotonia desse período. Graças a ele, voltará a rir e a dançar com os amigos nas pistas da noite, a pouco e pouco retomará o flirt, mais seguro de si próprio e da imperturbável moral do desejo.

Foi numa dessas noites que conheceu Martin, um estudante asturiano de Erasmus na cidade. As escapadelas sexuais para o quarto do apartamento T5 que partilhava com colegas da Faculdade de Engenharia, aparentemente alheios à natureza sua relação com Rafael, rapidamente se ancoraram em sentimentos mais sérios e profundos, e ao fim de um mês começaram a namorar. Fábio foi o primeiro a notar o retorcido sentido de humor do Destino que o tinha levado a apaixonar-se por um espanhol, em jeito de consolação por aquele Orgullo frustrado. Foram meses luminosos, em pleno contraste com o ano anterior, nos quais o único motivo de inquietação era a relação crispada entre o namorado e o melhor amigo, desajeitadamente dissimulada por ambos na tentativa de uma cordialidade funcional. Apesar disso, Fábio tornou-se no conselheiro sentimental de bastidores, conduzindo o amigo pelas inevitáveis brigas comezinhas e cenas de ciúmes que afligem todos os apaixonados e que têm o efeito de insuflar algum oxigénio e naturalidade na redoma da vida íntima. Martin mostrou-lhe o segredo dos momentos compartilhados no seu encosto, em que as palavras trocadas não transmitem nada a não ser a entoação musical da felicidade interior. Em todos aqueles anos desde que se assumira como homossexual, nunca julgara que essa palavra identificasse mais do que a uma taxonomia não convencional do desejo. O seu namoro com Martin consubstanciou-a num elemento novo mas hegemónico, a que tudo se prostrava — o amor.

Não é de surpreender o agravo que sentiu quando Fábio, certa tarde e de forma muito casual, tocou no assunto do inevitável regresso de Martin a Espanha no final do ano lectivo. A mera verbalização daquela ideia soou na cabeça de Rafael a blasfémia. Revoltado e magoado, afastou temporariamente o amigo de si e refugiou-se das inevitabilidades nos braços de Martin. Mas com a aproximação do Verão as palavras de Fábio foram tomando peso, aconchegando-se na sua consciência. De certa forma, Rafael percebeu que o namorado partilhava a mesma resignação perante aquele desfecho. Quando, no momento da despedida, ambos se comprometeram a vencer a distância geográfica mantendo os termos da relação, parecia que nos entreditos da conversa e nos minutos suspensos que durou o beijo de despedida ambos acordaram com o desvanecer sereno daquele amor. Nas semanas seguintes, nos anos seguintes, os namorados tornaram-se em velhos amigos, conduzidos por uma genuinidade tão implausível nessas metamorfoses — talvez por nunca terem torturado as recordações felizes no processo de executarem um compromisso que ambos sabiam ser impraticável.

Rafael suportou a separação com uma resignação fria que impressionou os seus amigos mais próximos. O “amadurecimento emocional” que veio depois do namoro, como o próprio explicava, era, aos olhos de Fábio, sintoma de um desencantamento perante a vida. «Devias voltar à Chueca», disse-lhe no final desse verão, quando ambos celebravam a promoção de Rafael dentro da empresa e a sua mudança para um escritório longe do shopping. Aquela sugestão fez vibrar uma corda antiga, acordando memórias e aspirações felizes, e o súbito impulso de agarrar a vida. Estava decidido. Prometeu a si mesmo e a Fábio que estaria na sua melhor forma física quando pisasse o aeroporto de Barajas, imitando os gogo boys que, de speedos cor-de-rosa, pavoneiam pelas ruas de Madrid o resultado de incontáveis horas passadas no ginásio. Elaborou um detalhado e ambicioso plano de treino que foi cumprindo diariamente com obstinação e que produziu efeitos passadas apenas algumas semanas. Habitualmente, o roteiro físico incluía várias rondas de abdominais na placa ajardinada da alameda, cinco séries de flexões de vários tipos, elevações na estrutura enferrujada de um antigo outdoor e os inevitáveis 45 minutos de corrida em que descrevia várias voltas ao estádio, terminando com o sprint final em direcção ao viaduto. Mesmo nos dias mais chuvosos era inevitável a corrida de fundo pelas ruas mais largas e em torno do estádio, onde sobre as grandes palas da cobertura se abrigava das intempéries para as séries de abdominais e flexões.

Fábio acompanhava-o nas corridas, em que aproveitavam para pôr a conversa em dia. O assunto que dominava era a tão aguardada semana de Julho e as loucuras que ambos prometiam não deixar de parte. Com o final do Inverno, estava já tudo alinhado: viagens e hotel comprado, os principais eventos, festas e bares identificados, uma playlist conjunta que fornecia o combustível para as sessões de exercício que se iam intensificando. As semanas passavam e as tardes iam prolongando a luz, os dias ficavam mais quentes, as ruas mais despovoadas com o rumor de uma praga que se espalhava sub-repticiamente. Rafael adquiriu o hábito de terminar os treinos empoleirado nos cabos do viaduto, deixando que a brisa lhe arrefecesse o corpo e lhe conduzisse o espírito de volta à Chueca.

Flotando sola sobre el viento
Como pétalos de flores que una vez
Deshojé en la cima del iceberg

Quando finalmente desceu do seu pódio de betão azul reparou no carro que tinha passado por si há instantes enquanto corria no asfalto em contra-mão. Estacionara na rotunda mais à frente e pelo passeio vinha uma figura ao seu encontro. Na euforia da chegada à meta não se deu conta de que se tratava, afinal, de Fábio. Subitamente, pelo semblante que carregava consigo, teve a sensação de lhe trazer uma notícia nefanda. Rafael, na verdade, já a adivinhava. Apenas umas semanas após começar as suas novas funções nos escritórios da empresa, tinha sido enviado para casa. Devido à reordenação de prioridades que as circunstâncias impunham, a formação onde até então vinha aprendendo as tarefas do seu novo cargo ficou em suspenso. A sua chefia decidiu transferi-lo para o regime de layoff, deixando Rafael em reclusão domiciliária com a mãe, também dispensada da clínica dentária, que entretanto encerrara. Viram-se confrontados com uma redução significativa no orçamento mensal, apesar de à caixa do correio continuarem a chegar as mesmas contas de sempre. Ele mantinha o contacto com os amigos através das redes, constatando que também eles tinham seguido um processo semelhante ao seu. A excepção era Fábio, que enquanto funcionário de um hipermercado passou a trabalhar em horário alargado, esforçando-se por cumprir as pouco razoáveis imposições da empresa e, sobretudo, tentando lidar com as reacções de ansiedade e pânico que os clientes descreviam nas prateleiras e nas caixas de pagamento.

Não via o amigo há uma semana, desde que fora decretado o estado de emergência e as suas responsabilidades profissionais drasticamente reformuladas — Rafael confinado à segurança claustrofóbica do lar, Fábio enviado para as trincheiras da reposição de mantimentos. Sem se aproximar demasiado, Fábio tirou a máscara e ofereceu-lhe um sorriso cheio de comiseração. «Já sei o que me vais dizer», Rafael adiantou-se. Era inevitável. Em Espanha a evolução das coisas tomava agora uma proporção assustadora. Na abertura dos telejornais viam-se imagens sofrimento e uma solidão que angustiava quem conhecia a feliz palpitação das ruas, as praças inundadas com a alegria das conversas e o gargalhar que acompanha o típico menu local de cañas, tapas e amigos. «Acho que me contagiaste com o teu entusiasmo. Quando li a notícia do cancelamento das festas senti uma grande pena. E pensei logo em ti…». Mas Rafael respondeu com um sacudir de cabeça que descansou Fábio. «Mas pensa assim: se continuares a treinar como tens feito, no próximo ano serás o tio mais gostoso e vais ver se não te elegem o rei do Orgullo!». E naquelas semanas treinar foi, de facto, o único escape de Rafael face ao vazio das horas. Estendeu a duração dos treinos pelo simples motivo de não ter mais nenhum destino a dar ao tempo. Aproveitava esses momentos preciosos para desentorpecer os músculos e insuflar os pulmões com a vastidão atmosférica do exterior, sentir o vento frio da manhã lanhar a pele da cara enquanto corria pela faixa central da alameda.

No primeiro dia em que se levantaram as restrições sociais, um mês desde o encontro com Fábio no viaduto, saía para a corrida de final de tarde quando se deparou com o amigo à porta de casa, encostado ao carro. Percorreram em passeio as redondezas, enquanto Fábio lhe contava as peripécias, algumas peculiarmente dramáticas, por que tinha passado no hipermercado ao longo daquelas semanas. A sua odisseia laboral era preenchida por febres de açambarcamento, do papel higiénico aos desinfectantes, da farinha às latas de atum, pela incapacidade dos clientes em cumprirem as mais elementares regras de protecção sanitária, por altercações nas caixas de pagamento, quando alguns mais “distraídos” se infiltravam nos intervalos das filas, pela desinfecção constante de tudo, pelas mãos secas e gretadas pelo álcool esfregado incessantemente. Este sortido de desgraças fez aquele mês passado em casa parecer aos olhos de Rafael mais tolerável.

Com o fluir da conversa, o sol deixou de reflectir a sua presença no esqueleto do alto edifício em construção ao fundo da alameda. Já era tarde. Despediram-se não sem antes marcar um novo passeio daí a uns dias. Fábio insistiu em voltar sozinho até ao carro, já que não queria impedir Rafael de cumprir o treino daquele dia. De facto, só dispunha de meia hora antes do jantar à hora habitual. Despediu-se do amigo, colocou os auriculares, seleccionou a playlist habitual no telemóvel e disparou em direcção ao estádio. Faria uma volta a um ritmo mais acelerado. Pela primeira vez em muito tempo não se sentia tolhido pelo habitual perímetro de condicionalismos — o emprego, o vácuo deixado pela supressão da vida social, a convivência turbulenta com mãe naquelas semanas, a impossibilidade de fazer planos para os próximos tempos…

Dime, por qué hás asumido
Que todo está perdido
Y te das por vencido?
No seas negativo
Escucha lo que digo
Piensa en positivo

Era já noite e a iluminação pública acordava pálida e lamacenta. Depois de algumas voltas em torno do estádio, descia agora para a passagem pedonal sob a teia de pilares que sustenta a auto-estrada, no nível superior. A linha ferroviária corria debaixo dos seus pés, encravada no fosso entre as fundações daquele complexo cruzamento viário. O pano de betão sobre a sua cabeça tapava a pouca iluminação que irradiava das imediações. Um comboio aproximava-se e projectava do subsolo luz aos intervalos na pele crua das estruturas. No passeio oposto àquele por onde passava, por entre a rede enferrujada da guarda de protecção, viu um corpo estendido no chão. A locomotiva afastava-se e a candeia extinguia-se gradualmente, devolvendo a sombra ao lugar. Tentando não tropeçar no salto que deu para a estrada, desembaraçou-se dos auscultadores, atirando-os ao acaso. Imediatamente os seus ouvidos foram atulhados com o ribombar das rodas do comboio nas juntas dos carris e o estrondo de um camião que nesse instante voava pela auto-estrada. O corpo vertido no passeio estremeceu quando Rafael gritou por ele. Alcançado o outro lado, ajoelhou-se no cimento húmido e pegou na cabeça do amigo, tremendo de pavor. Fábio agarrava o estômago como se a fonte da sua dor estivesse toda ali. Sangrava do lábio superior e no lugar do olho direito estava uma massa vermelha, inchada, que impedia qualquer movimento das pálpebras. Rafael tentava conter aquele rosto desfigurado entre as mãos, mas parecia-lhe uma missão irremediavelmente perdida. Então sentiu um medo violento de sufocar e, desesperado por se manter à tona na penumbra em que naufragavam, gritou por ajuda.

A porta automática era a última barreira entre a atmosfera climatizada do shopping e o calor insuportável que reinava lá fora. Fábio, exausto depois de terminar mais um dia de trabalho, arrastou-se para o carro, que naquele dia ficara estacionado no parque exterior. Abriu a porta e foi como se tivesse acabado abrir o forno para retirar um assado. Deixou a brisa trespassar o carro por uns minutos. Pegou no telemóvel e reparou que Rafael lhe enviara uma mensagem, pedindo que fosse ter consigo na tarde do sábado seguinte. Sábado, 4 de Julho. Ocorreu-lhe que aquele seria o dia em que, não fosse a pandemia, teria lugar a grande parada do Orgullo. Perguntou-se se seria esse o motivo do encontro. «Sim, é verdade, mas não só», respondeu-lhe Rafael quando o recebeu à porta de casa no dia combinado. Enquanto passeavam pela zona, o amigo ia-lhe falando sobre os novos colegas de trabalho, agora que finalmente terminara o layoff. Contou-lhe de Miguel, uma paixão à primeira vista que se tinha apagado em menos de uma semana, depois de terem partilhado alguns cafés e longas conversas virtuais que acabaram por domesticar os impulsos iniciais. Trabalhavam em equipas diferentes mas costumavam almoçar juntos e cochichar rumores sobre o open space. Fábio não conseguiu evitar um apontamento de ciúme. Sentiu-se triste por ter o amigo tão longe de si no dia-a-dia. Sentia falta dos almoços que durante tanto tempo partilharam no shopping.

Reparou então que se aproximavam do local onde, cerca de dois meses antes, tinha sido atacado. Rafael apontou para o saco que trazia ao ombro, como se tudo fizesse parte de um plano meticulosamente elaborado. Num dos pilares da auto-estrada, próximo do passeio onde encontrara Fábio naquela tarde, colou um cartaz com uma grande bandeira arco-íris e ao centro a legenda a stencil negro «LGBTIfobia é crime». Fábio olhou para aquele rapaz de vinte e três anos, quatro mais novo do que ele, e surpreendeu-se com a sua determinação, tão diferente do olhar encantado e sedento de sonhos que lhe pintava a expressão quando o conheceu. Algo tinha mudado em Rafael naquelas semanas. Uns dias depois do ataque, à saída da esquadra onde foram apresentar queixa, o agente confidenciou-lhes que os assaltantes dificilmente seriam identificados, camuflados no delito pela escuridão e pela rapidez com que tinham agido. Registava-se no arquivo da polícia o furto do telemóvel, acompanhado de agressão física e verbal. «Paneleiro de merda», o insulto cravado no estômago de Fábio à força de vários pontapés brilhava no auto como prova do ódio, como selo branco da homofobia. Mas desse expediente burocrático não adviria nenhuma consequência. Desde então, Rafael manifestava frequentes erupções de irritabilidade, em que Fábio reconheceu a sintomatologia de uma convulsão interior. Ele recuperara rápido e quase já não se notavam as mazelas do incidente. Mas Rafael não se recompôs tão prontamente. Durante algumas semanas Fábio nada soube do amigo.

Enquanto aplicava o spray de tinta, ia-lhe falando sobre activismo. No primeiro sábado de Julho também se celebrava o Orgulho na sua cidade, cuja exuberância em nada se comparava com as multidões que se reúnem na Gran Via mas que, ainda assim, tinha a inestimável utilidade de acordar a consciência colectiva local para as injustiças que ali se travavam diariamente. Como a agressão de que Fábio fora vítima. Depois dessa noite, procurou informação sobre como agir, como colaborar, como combater a discriminação. Em pouco tempo viu-se a colar cartazes com palavras de ordem pelas paredes da Baixa, acompanhando um grupo de jovens activistas. 

Retomaram o percurso, seguindo por uma rua que os levava ao centro. Nos primeiros dias foi-lhe difícil encontrar o sono à noite. Saía então para correr, desafiando os agressores a comparecerem no local daquele ataque cobarde. Rafael passou a correr sem playlist, absorvendo o silêncio frio da noite. 

Dobraram a esquina e pararam uns metros à frente, junto a uma parede de tijolo mal rebocada. Para lá do muro via-se um esqueleto de betão com vários metros de altura. O tempo já tinha deixado ali a sua marca, nos musgos e líquenes ornamentais e nas fissuras abertas nas vigas da construção interrompida. Dos pilares superiores disparavam molhos de arames enferrujados, de pontas desvairadas e grotescamente estropiadas, como se manifestando a recusa da estrutura em continuar a crescer. O patamar mais alto dava a impressão de um diadema grosseiro em filigrana de ferro, como que a coroar uma cidade maldita. «Neste estaleiro», contou-lhe Rafael, «há quinze anos alguém morreu porque, tal como nós, era diferente». Como havia feito antes, colou no portão de chapa a maior bandeira que tinha no saco. Com o spray de tinta escreveu na parede um nome feminino que Fábio conhecia, e por baixo o intervalo da sua curta vida. A seu lado, Rafael sorriu-lhe e reparou então que no lábio do amigo ficara uma pequena, quase imperceptível, cicatriz provocada pelo soco mais violento. Decidiu então que converteria aquela linha de pele riscada pelo ódio no seu próprio hino do Orgulho.

Pedro Leitão

Imagem por lucas Favre.