Quando Dorottya Redai e Boldizsar Nagy, da Hungria, lançaram o seu novo livro infantil a 21 de setembro, não esperavam que a primeira edição de 1.500 cópias esgotasse em duas semanas. Meseorszag mindenkie, ou Um conto de fadas para toda a gente, é uma antologia de contos de fadas tradicionais atualizada com personagens mais diversificadas, inclusivas e LGBTI em cenários contemporâneos. Entre os novos protagonistas estão uma Cinderela de etnia cigana, uma Rainha da Neve lésbica e um veado não binário. “O nosso objetivo era tornar a literatura infantil mais diversificada na Hungria e mostrar às crianças como a vida é colorida e maravilhosa”, diz Nagy, a editora do livro. “Queríamos histórias que refletissem e honrassem a vida de crianças e jovens.” Uma segunda edição de 15.000 cópias será lançada em breve, um elevado número para um livro infantil num mercado relativamente pequeno como a Hungria.
No entanto, logo após o seu lançamento, o livro tornou-se alvo de ataques homofóbicos por políticos, incluindo o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orban, e enfrenta um boicote público. Em 25 de setembro, o líder do partido de extrema-direita Mi Hazank rasgou as páginas do livro uma a uma durante uma conferência de imprensa, chamando-o de “propaganda homossexual“. A ação foi rapidamente condenada por ativistas de direitos humanos e pela Associação de Editores e Livreiros da Hungria, que considerou o ato uma reminiscência dos queimadores de livros nazis e destruidores de livros comunistas. Quando questionado sobre o livro durante uma entrevista de rádio em 4 de outubro, Orban disse “A Hungria é um país paciente e tolerante no que diz respeito à homossexualidade. Mas há uma linha vermelha que não pode ser ultrapassada, e é assim que eu resumiria minha opinião: Deixem os nossos filhos em paz.” Uma petição organizada pelo grupo ultraconservador CitizenGO, exigindo a remoção do livro das livrarias, ultrapassou as 85.000 assinaturas.
Desde que Orban foi eleito para um cargo na Hungria, em 2010, que a comunidade LGBTI está sob crescente ataque. Uma nova constituição promulgada em 2012 definiu a “instituição do casamento como a união de um homem e uma mulher” e “a família como a base da sobrevivência da nação”, excluindo os casais do mesmo sexo. No início deste ano, a introdução do Artigo 33, que encerrou o reconhecimento legal de pessoas trans, foi outro golpe para os direitos das pessoas LGBTI. Ativistas também dizem que o discurso público e político em torno dos direitos LGBTI se tornou cada vez mais hostil nos últimos dois anos – por exemplo, em 2019, o presidente da Assembleia Nacional da Hungria comparou casais do mesmo sexo que desejam adotar crianças a pedófilos. “Temos visto um aumento no que chamamos de homofobia e transfobia política. Os principais funcionários do governo têm feito comentários bastante desagradáveis e abertamente homofóbicos”, disse Tamas Dombos, diretor e membro da equipe da organização LGBTI húngara Hatter Society, referindo-se à recente entrevista de rádio de Orban em particular como perpetuando estereótipos prejudiciais. “Quando acordamos e vemos um político dizer algo contra a comunidade LGBTI, isso está a prejudicar o bem-estar e a saúde mental da comunidade na Hungria.” De acordo a Agência de Direitos Fundamentais, 81% das pessoas húngaras LGBTI acredita que a postura negativa e o discurso de políticos e partidos políticos são os principais responsáveis pelo aumento do preconceito, da intolerância ou da violência contra as pessoas LGBTI no país.
“Isso enquadra-se numa tendência de crescimento do discurso de ódio LGBTIfóbico documentado noutros países europeus”, disse Katrin Hugendubel, da ILGA-Europe, enquanto os líderes populistas procuram obter o apoio de eleitores tentando apelar aos “valores familiares tradicionais.” Por exemplo, antes da reeleição no início deste verão na Polónia, o presidente Andrezj Duda chamou a promoção dos direitos LGBTI de uma “ideologia” pior do que o comunismo, em plena campanha da “Carta da Família” que incluía promessas de impedir que casais do mesmo género se casassem ou adotassem crianças e proibição de ensino sobre questões LGBTI nas escolas polacas. A Polónia também enfrentou críticas internacionais e retirada de financiamento da UE por causa das suas “zonas livres de pessoas LGBT” em todo o país. Da mesma forma, na Rússia, uma lei homofóbica que proíbe a “propaganda gay” tem sido repetidamente usada para atingir ativistas e, em julho, um projeto de lei do Código da Família do país propôs a proibição formal do casamento entre pessoas do mesmo género e da adoção, inclusive por pessoas trans, bem como a introdução da indicação “sexo à nascença” nas certidões de nascimento que não pode ser alterada no futuro. “Não é acidental e é difícil negar a coordenação entre a Rússia, a Polónia e a Hungria”, diz Viktoria Radvanyi, membro da equipa do Budapest Pride. “A Rússia esta a tentar alcançar os países pós-soviéticos na Europa para divulgar essa agenda antiliberal. Não é com tanques ou exércitos. É um playground geopolítico e os direitos LGBTI estão no fogo cruzado.”
Na Hungria, o fogo cruzado afetou Redai, a gestora do livro devido ao seu trabalho com a Labrisz Lesbian Association, a organização que publicou Um conto de fadas para toda a gente. Labrisz dirigiu programas de educação LGBTI principalmente para escolas de ensino médio nas últimas duas décadas, mas enfrentou hostilidade de grupos de extrema direita nos últimos anos. Quando a pandemia do coronavírus surgiu, Redai e a sua equipa decidiram expandir e adaptar as suas atividades educacionais – tanto para responder à crise quanto para a crescente hostilidade contra a comunidade LGBTI. “Devido à atual situação social na Hungria, há muito ódio e frustração, e as crianças estão a crescer neste ambiente”, diz. “Achamos que é importante abordar as crianças desde cedo com questões de aceitação e diversidade.”
O livro inclui 17 histórias, apresentando personagens de género diverso e de origens étnicas, religiosas e socioeconómicas que nem sempre são representadas em histórias infantis. As histórias abordam temas que vão da deficiência à pobreza e contam com contribuições amadoras e profissionais. Com várias contribuições de pessoas LGBTI, Nagy diz que este é o primeiro livro infantil sobre pessoas LGBTI na língua húngara. “Queríamos dar voz a quem muitas vezes não tem voz”, diz ele.
E embora a controvérsia sobre livros inclusivos e progressistas não seja exclusiva da Hungria, o facto de o livro ter sido criticado – e até mesmo destruído – por políticos é particularmente preocupante. “É frustrante sermos acusadas de fazer mal às crianças”, diz Redai. “E é muito problemático quando um primeiro-ministro diz algo assim, porque então as pessoas pensarão que também o podem dizer.” Redai e Nagy dizem que os comentários de Orban ajudaram a legitimar a reação, já que os livreiros foram bombardeados com telefonemas insistindo que parassem de vender o livro. Redai afirmou inclusive que “uma organização de extrema direita colocou um póster numa livraria que dizia: ‘Nesta livraria é vendida uma publicação de propaganda homossexual que é perigosa para as crianças’. É uma reminiscência dos tempos fascistas“.
No entanto, Um conto de fadas para toda a gente parece ter conquistado apoio público significativo de famílias, professoras e livreiros de toda a Hungria – o que seus editores veem como um pequeno sinal de esperança num cenário sombrio contra os direitos das pessoas LGBTI no país. “Parece que o livro está a tornar-se num símbolo de resistência contra a opressão e a discriminação”, diz Nagy que afirmou estar a receber pedidos para a adaptação do livro em versão áudio, e-book, jogo de tabuleiro e novas traduções. “Parece que muitas pessoas perceberam que é importante ter esse tipo de livro”, diz Redai. Ela acrescenta que uma grande rede de livrarias doou fundos para ajudar o livro a chegar às crianças carentes. E embora Nagy diga que o partido político de Orban conseguiu tirar proveito do medo e da frustração das pessoas, ambas estão esperançosas este episódio possa ajudar a tornar a Hungria um lugar melhor para a próxima geração.
“Este clima xenófobo, homofóbico, anti-semita, racista e sexista provavelmente acabará apenas com o fim deste governo, não antes”, diz Redai. “Mas foi desafiado e espero que este livro possa inspirar as pessoas a criarem novos desafios.”
Fonte: TIME.
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