A vida testa-nos constantemente. Testa-nos o talento para a saborear e fazer dela algo construtivo. Com alguma sorte e empenho conseguimos ir buscar o melhor que há em nós e em quem nos rodeia a melhor das receitas para, eventualmente, chegarmos ao fim do dia e acreditar que, pelo menos boa parte das vezes, valeu a pena. Este jogo de descoberta, equilíbrio e desequilíbrio é afinado ao longo das nossas vidas quase sempre por tentativa e erro. Ao fim de uns anos, começamos a ter convicções mais fortes sobre o que é certo e errado, onde se encontram os nossos valores éticos e morais. E, com um pouco de humildade à mistura, percebemos que, embora as certezas raramente sejam absolutas, ganhamos uma visão daquilo que defendemos, daquilo que, em última análise, somos. É aqui que entra o André.
Imaginemos que um dia o André chega-se a nós e, de sorriso nos lábios e um braço pelo ombro, nos diz que ser-se homossexual não nos desvaloriza e que defende, inclusive, o casamento igualitário. Como nos iríamos sentir perante umas palavras que reiteram aquilo que consideramos certo e justo? Que sorriso é aquele e porque está aquele braço à nossa volta? Qual é, afinal, o problema com o André?
O problema é que aquilo que o André nos disse não vale por si só. E não o vale a diferentes níveis. Vejamos:
O André finge não perceber que qualquer pessoa deverá tornar-se na sua melhor versão possível, mas que a mudança implica igualmente a prova da mesma por uma questão de coerência. O que mudou então para que o André já não considere o casamento “uma coisa entre homem e mulher”? Ou que as “famílias arco-íris” sejam menos capazes para cuidar das suas crianças?
O André também finge não perceber o sentido de comunidade, caso contrário veria que, lá porque diz agora que ser gay não nos desvaloriza, estivemos igualmente com atenção quando ele, de braço caído no ombro de crianças trans, lhes disse que a sua identidade era “um abuso” e que depois votou contra o direito de se afirmarem como elas são. De sorriso nos lábios, claro.
O André volta a fingir não perceber o que é a interseccionalidade quando ataca constantemente outras minorias perseguidas e julga que apenas as ataca a elas, estanques e isoladas das restantes comunidades. Mas não, quando defende confinamentos especiais para população portuguesa de etnia cigana; quando sugere que a deputada Joacine Katar Moreira “seja devolvida ao seu país de origem”; quando é o único a votar contra medidas de combate ao racismo; quando partilha espaço com quem referenda a pena de morte; a revisão constitucional pela castração; a defesa pela remoção dos ovários a mulheres que interrompam voluntariamente a gravidez; e quando se associa, direta ou indiretamente, a neonazis, não deixamos de o ouvir e notar esse braço tombado no nosso ombro.
É que se à primeira vista e ao primeiro toque pode parecer um gesto de aproximação, a vida testa-nos também o instinto de sobrevivência e com ele aprendemos a discernir o genuíno da ameaça. E, neste momento, o braço do André não passa de uma afronta. Longe de amistoso, este braço pretende apenas vender a promessa de um caloroso abraço, mas facilmente se transforma num garrote que, ao contrário de outros, não queremos mais uma vez carregar.
Lamento, André, mas Ernst só foi enganado uma vez.
Nota: Texto revisto pela Ana Teresa.
1 comentário