De tempos a tempos, quando alguma pessoa se revela trans, surgem as habituais notícias ao seu coming out. Habitual também é usarem o “nome morto” (ou deadname) e assim desvirtuarem, quase sempre em tom sensacionalista, a coragem e a identidade da própria pessoa. Ainda esta semana aconteceu, anos e anos de campanhas, conversas e formações e voltou tudo a repetir-se com Elliot Page. Ainda há poucas semanas aconteceu igual com Maria João Vaz, que teve inclusive direito a reação por parte da Presidente da ILGA Portugal, Ana Aresta. E, confesso, porque foi isso que me fez escrever este texto, mais custa que, além do erro continuado dos órgãos de comunicação social portugueses, também sites especializados na temática LGBTI em Portugal caiam no mesmo erro.
Dado que o uso do “nome morto” e de incongruências de género nas notícias sobre pessoas trans se revela ainda tão universal nos orgãos de comunicação social, comecemos pelo que é mais simples: o que é o “nome morto”?
Compreender a importância do nome escolhido
Para muitas pessoas trans, a mudança de nome é um passo positivo no processo de transição. Esta mudança de nome pode ajudar uma pessoa trans e pessoas que com ela lidam a verem-na como o sendo do género com que se identifica. Além disso, pode igualmente aliviar algum desconforto associado ao nome antigo de uma pessoa. O nome próprio é fulcral na afirmação da identidade de qualquer pessoa e, em especial para as pessoas trans que decidem alterar o seu, possui um peso ainda mais importante no que a pessoa se sente e é.
Tendo isto em conta, não é difícil entender que não é por acaso que o nome dado à nascença de uma pessoa trans seja chamado de “nome morto” a partir do momento em que ela o rejeita e se afirma com um outro nome coerente com o seu género. Num mundo que exige constantemente das pessoas trans a sua validação e a sua prova, o seu nome escolhido é um dos mais básicos e primordiais direitos que possuem para poderem afirmar, social e legalmente, quem são. Forçar um “nome morto” (deadnaming) pode ser-lhes extremamente prejudicial e violento, por tudo o que ele representa, todos os obstáculos, todas as agressões, enroladas naquelas sílabas. “Nome morto” rima com transfobia. Alguém usar o nome escolhido de uma pessoa trans é, por isso, aceitá-la como é, respeitá-la como é, abraçá-la como é.
Este nível mínimo de aceitação tem, no entanto, consequências graves quando não é respeitado. Pessoas trans que são tratadas pelo “nome morto” tendem a sofrer de depressão, bem como ideação e comportamentos suicidas. “Sabemos que o uso do “nome morto” pode estar associado a piores resultados de saúde mental” em pessoas trans, explicou Samatha Busa, diretora clínica do Serviço de Género e Sexualidade do Departamento de Psiquiatria Infantil e Adolescente da NYU.
O que diz a investigação?
Uma pesquisa publicada no Journal of Adolescent Health, em 2018, confirma a explicação de Busa. Entre 129 pessoas com idades entre 15 e 21 anos, todas elas transgénero ou não conformes com o género atribuído à nascença, 74 usaram um nome escolhido diferente do nome que receberam no nascimento. No artigo, foi descoberto que o uso do nome escolhido (em oposição ao “nome morto”) estava relacionado a “uma diminuição de 29 % na ideação suicida e uma diminuição de 56 % no comportamento suicida“. Foi igualmente observado que o uso do nome escolhido ajuda a diminuir as preocupações com a saúde mental das pessoas trans: “Para jovens trans, o uso do nome escolhido em contextos diversificados parece afirmar positivamente a sua identidade de género e diminuir os riscos de desafios no que toca à sua saúde mental.“
Embora os efeitos psicológicos sejam bastante diretos, menos óbvios (mas igualmente prejudiciais) são os efeitos potenciais do uso do “nome morto” na saúde física destas pessoas. Por exemplo, Rodrigo Heng-Lehtinen, vice-diretor-executivo do Centro Nacional para a Igualdade das Pessoas Transgénero, diz que um consultório médico não usar o nome escolhido “torna a pessoa menos provável de aceder novamente aos serviços no futuro. [Estas são] consequências tangíveis — impedir que essa pessoa aceda a cuidados médicos.” Esta situação pode assim contribuir para uma maior disparidade no acesso aos cuidados de saúde dentro da comunidade LGBTI.
O que podemos fazer?
Como podemos então ajudar e falar com e sobre pessoas trans com o devido respeito? Martin, cineasta trans, compilou, com algum humor, um guia rápido que podemos facilmente usar, quer no nosso dia a dia, quer na redação de um jornal. Ora, vejamos:
- Não usar o nome atribuído à nascença (“nome morto”). Nunca. Essa merda está morta, esquecer que até existiu!
- “Ela agora é ele” é a pior frase, nem vale a pena!
- Corrigir as pessoas!!! se usarem!!!! os pronomes errados!!!
- Não perguntar às pessoas quais as cirurgias que fizeram ou que planeiam fazer
- “OMD, nunca teria adivinhado que eras trans” não é o elogio que pensas que é
- Se errarmos nos nomes ou pronomes, está tudo bem. Apenas temos de corrigir prontamente e seguir em frente. Não tornar isso um problema maior do que é. Repito, não fazer disso um problema maior do que realmente é!
- Fazer um esforço no que toca aos pronomes
- “Ele, ela, seja o que for” não é o comentário engraçado que pensas que é
- Perguntar o que podemos fazer para apoiar estas pessoas
- Não ganhamos um prémio especial por usarmos o nome e os pronomes corretos, é o respeito básico. Não agir como se estivéssemos a fazer-lhes um favor
- Cada pessoa vive a sua própria transição à sua maneira e ao seu próprio ritmo. Não podemos policiá-la.
- Não perguntar sobre se a orientação sexual mudou. As pessoas irão falar sobre isso ao seu próprio ritmo.
- Sejamos pessoas respeitosas, não é difícil!
Esta lista não é realmente complicada e baseia-se no princípio de que a vida das pessoas tem valor, é digna e merece respeito. Tentar impor-lhes uma identidade que não é a sua é de uma violência desumana, por isso importa pensarmos nas consequências que as nossas palavras e os nossos atos têm nas suas vidas. Não há regras absolutas, por exemplo, Maria João Vaz sentiu-se confortável o suficiente para falar no seu “nome morto”, mas a decisão foi da mesma. Devemos evitar usá-lo repetidamente, e isso não desculpabiliza o uso indevido de pronomes nas notícias do seu coming out como pessoa trans.
Já Elliot Page não fez qualquer menção ao seu “nome morto” e isso foi escolha dele e que apenas a ele diz respeito. Deve ser, portanto, respeitada a sua decisão. Não é, aliás, por ser uma figura pública que desculpa a quebra do respeito pela sua pessoa e identidade. Ainda para mais quando ele se tornou há vários anos ativista e ícone queer, seguido por milhões de pessoas que se revêem na sua luta. Quando o desrespeitamos a ele desrespeitamos também a todas elas.
Importa aprendermos com os nossos erros e encontrar formas de falar de forma séria e respeitosa com e sobre pessoas trans. Não há aqui artimanhas, se errarmos pedimos desculpa, emendamos o que dissemos e continuamos conversa. É tão somente isto, ouvir o que nos é dito. Orgulhosamente trans.
Nota: Texto revisto pela Ana Teresa.
Fonte: Imagem.
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