O Cromossoma Transfóbico

Um dos argumentos que surge quase sempre que entramos em discussões sobre a identidade de género é a de que o “sexo é real”, fazendo a ponte com os cromossomas XX e XY e refutando que a ideologia não vence “factos”. O problema, claro está, é a identidade das pessoas trans que nunca serão aos seus olhos “homens ou mulheres biológicos”, que é como quem diz, “homens ou mulheres reais”, que é como quem diz ainda “homens ou mulheres”. A justificação dada é simples e aparentemente intuitiva: XX corresponde a uma mulher; XY a um homem. Ponto. Final. Mas a verdade é que existem vários pontos e nenhum deles finaliza a conversa. Antes pelo contrário, dá-lhe a nuance e a inclusão que nos liberta, a todos e todas, das amarras do género e de tudo o que ele simboliza. Porque essa prisão está muito mais embrenhada no simbolismo de cada género do que a biologia. E isso não é necessariamente mau.

A crença popular de que o sexo surge apenas de sua fórmula cromossómica fixa está errada. A verdade é que o sexo biológico não está escrito em pedra, mas reflecte sim um sistema que potencia a mudança. Ou seja, o sexo biológico é muito mais complicado do que XX ou XY. Pessoas XX podem apresentar gónadas masculinas. Pessoas XY podem ter ovários. Todos os casos surgem através de um conjunto de sinais genéticos complexos que acontecem durante o nosso desenvolvimento.

Porque raio tenho de usar o pronome ‘ela’ se esta pessoa tem cromossomas XX?

Dito isto, de pouco ou nada serve este tipo de informação quando a recusa em, por exemplo, usar corretamente pronomes é justificada por ditos cromossomas. Este é, aliás, um dos truques usados por quem defende ideias transfóbicas. Enquadrar estas questões numa perspetiva identitária: O que é uma mulher? O que é um homem? Sexo é real! Responder, por exemplo, que “mulheres trans são mulheres”, embora a boa intenção, faz-nos cair na armadilha de ter que explicar o que é ser mulher. E como é que se explica, ou prova, o que é ser-se mulher? Eis que surge então facilmente o argumento dos cromossomas e, de repente, vêmo-nos na obrigação de explicar ciência cromossómica para chegarmos à conclusão que, neste caso, não é isso que define uma mulher. O que define então uma mulher?

Esta é uma pergunta com rasteira e que facilmente nos encosta contra a parede. Porque a resposta é simples: não se define, não se prova. Entramos assim no mundo da metafísica e da filosofia, como provo eu que sou homem? Tal como o amor, não me é possível definir ou provar, apenas o sinto. Sinto-me homem e isso deverá bastar. Como provamos que amamos uma pessoa? Podemos dar todas as respostas no mundo e mesmo assim não o provaríamos irrefutavelmente.

Mas as nossas vidas são se regem por metafísicas e aqui importa enquadrar estas questões identitárias não tanto em questões filosóficas, mas sim na igualdade de direitos. Afinal de contas é essa a razão pela qual lutamos. Não para provarmos se somos ou não aquilo ou aqueloutro, esse é precisamente o spin que aquelas pessoas pretendem impor-nos para propagar o seu preconceito e discriminação. Não nos deixemos pois enganar.

É tão descabido justificar a negação do pronome com o cromossoma que a pessoa diante de nós possa ter que basta perguntar como tratariam estas pessoas as restantes antes de serem descobertos os cromossomas no final do século XIX. Como ‘saberiam’ se aquela pessoa era homem ou mulher se não sabiam os seus cromossomas?! Um novo indício de que não há uma resposta única e, talvez, haja uma infinidade delas. A mais óbvia é o sexo. Mas, além de sabermos que o sexo também não é binário, como nos regemos social e culturalmente quando desconhecemos o sexo de uma pessoa à nossa frente? Como a tratamos quando, na esmagadora maioria das vezes, não sabemos, efetivamente, o seu sexo? É isso impeditivo? Olhamos para alguém e não sabemos como a abordar? E, se houver algum erro ou confusão da nossa parte, como o poderemos superar? Perguntar-lhe talvez? Não o sexo ou os cromossomas, óbvio, isso seria descarado, impróprio e estúpido, mas o seu nome, por exemplo. Isso já nos daria uma ótima pista sobre a sua identidade. A partir daí é seguir e respeitar o acordo que fazemos com aquela pessoa, tal como ela fará connosco.

Um paralelo que podemos fazer, sem esquecer a questão biológica, mas enquadrando-a na igualdade de direitos e na importância da linguagem social e cultural nas nossas identidades, é a das famílias adotivas. Estas famílias não são, no sentido restrito ou biológico do termo, pais e mães de uma criança adotada e a nível clínico isso poderá ser relevante em contexto de prevenção ou tratamento de doenças hereditárias, mas a nível social e em termos de direitos ninguém coloca em causa se aquelas famílias são pais e mães das das crianças que adotaram. Porque, indiscutivelmente, são-no.

Cromossomas e transfobia estiveram em discussão no Podcast dar Voz A esQrever 🎙🏳️‍🌈

Outra das argumentações que surgem neste novelo cromossómico é a da invisibilidade das mulheres cisgénero. Quando grupos não toleram que se abandone o uso de termos como “mulher que menstrua” em favor de “pessoa que menstrua” ou ainda o fim do uso de “pai” e “mãe” em favor do termo neutro “progenitor” nos documentos legais ou clínicos. Repito, nos documentos legais ou clínicos. Opção que avançou de forma a tornar o enquadramento legal e clínico mais abrangentes e universais. Social e culturalmente ninguém duvida que estas pessoas continuarão a ser mulheres, mães e pais. Legalmente não perderam qualquer direito, este é mais um exemplo de centrar a questão na igualdade de direitos e a mudança de documentos legais pretende promover precisamente essa igualdade sem desfavorecer nenhuma das pessoas anteriormente reconhecidas. Reitero, social e culturalmente aquelas pessoas continuam a ser reconhecidas como mulheres e mães. E legalmente também, apenas partilham agora uma lei que abrange mais pessoas e é mais universal. É esse o mote. É esse o foco essencial.

A ciência é clara e conclusiva: o sexo não é binário e pessoas trans são reais. É tempo de o reconhecermos na sua totalidade, pois definir a identidade sexual de uma pessoa através de “factos” descontextualizados não é científico, mas, pior que isso, é desumanizante e transfóbico. A experiência trans fornece uma compreensão essencial sobre a ciência sexual e demonstra cientificamente que fenómenos incomuns e atípicos são vitais para um sociedade bem-sucedida. E importa termos a consciência que o esforço científico em si é quantificavelmente melhor quando este é inclusivo e diversificado. As pessoas trans são uma parte integrante e indispensável para melhor conhecermos a nossa própria Humanidade e as suas vertentes sociais, culturais e legais. E a transfobia não é bem-vinda em nenhuma delas.

Para um aprofundamento sobre esta temática recomendo ainda o seguinte vídeo do canal Contrapoints da Natalie Wynn:

Fonte: Scientific American

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