Rufus, por Pedro Leitão

Imagem por Gabe Rebra.

Depois de Levitating, de Orgullo e de Lucas, hoje voltamos a publicar um novo conto da autoria de Pedro Leitão. Escrito durante o segundo confinamento e nos leva para uma relação criada entre uma parede. Pode essa separação ser quebrada? Que tipo de ligação é possível criar quando apenas nos são dados indícios, cheiros e, claro, música como pistas a algo que desejamos ter? Esta é, mais uma vez, uma história de olhares e de revelações. Vale a pena relaxar, deixar uma música de fundo como banda-sonora e ler esta história de amor e esperança:

Uma tarde encostei a cabeça à parede do quarto e vi o pôr-do-sol da janela da minha cama. É um dos privilégios de morarmos num oitavo andar, esta vista ampla sobre a cidade. Quase que esquecemos o tempo que já levamos aqui fechados. Já deixei de contar os dias. As divisões do tempo que existiam antes, dia/noite, trabalho/lazer, agora/memória, diluem-se no mesmo fluxo pardacento. Por ele vamos flutuando, placidamente, ao curso da corrente. Assistia ao poente como se de um intervalo publicitário se tratasse, interposto entre o programa da tarde e o da noite, na verdade semelhantes não fosse o artifício daquele corte conferir-lhes singularidade. Estava exausto no sentido radical da palavra, o inverso do cansaço físico, antes um esvaziamento total da capacidade de sentir. O meu corpo tinha-se dilatado para se ajustar perfeitamente às dimensões do apartamento. A cama era o centro nevrálgico. O tronco preenchia todo o quarto e as escassas peças de mobiliário tinham-se convertido em órgãos vitais, a secretária com o computador, a estante dos livros, a pequena poltrona azul. Os braços e os dedos escapavam-se para a cozinha porque era a divisão que recebia mais sol, com a mesa para dois onde tomava o pequeno-almoço. Os pés tentavam sair pela porta da entrada mas tinham-se tornado demasiado grandes, e um até se entalara no vão da casa de banho. Assim, não tinha outra hipótese senão quedar-me neste sítio à espera.

Através da parede vibraram acordes de piano.

Quando há alguns anos fui viver para uma grande metrópole do outro lado do oceano ouvia muito esta canção. Acompanhava-me nas viagens de metro, que era a parte do dia que mais me custava. Não me adaptei a esse lugar. Dominava o idioma sem dificuldade mas não a linguagem que possibilita a aproximação. Ficava a vaguear pelas ruas cheias de gente, na esperança de que alguém desse por mim. Esses acordes fizeram-me ver o engano: a destruição que tinha deixado, de que tinha fugido, encontrava-a então nessa cidade distante. Só me poderia reconstruir por inteiro no lugar de partida. Por isso voltei, regressei a casa. Fixei-me neste apartamento.

Continuaste a tocar a mesma canção nos dias seguintes, sempre ao final da tarde. E à noite, quando me deitava e a insónia vinha-se aconchegar a mim, ouvia-a novamente no meu telemóvel. Como nessas viagens de metro de antes. Resolvi responder-te com outra canção tua plena de desejo de abdicação. Toquei-a para enumerar as ansiedades que em mim despertam sempre àquela hora. Como se as nomeando as levassem as altas ondas da noite, como tu cantas. E, depois, o meu único pedido: posso voltar a adormecer?

Na noite seguinte, quando pousei o corpo vazio na cama, levei suavemente o ouvido à parede. O dedilhar de uma guitarra devia apenas sussurrar ao teu lado na almofada mas as paredes deste prédio são tão finas, ou o isolamento tornou a nossa capacidade de escuta tão apurada, que pude perceber como se o dissesses à minha frente

fuggi, regal fantasima

E adormeci sem pensar. Estava em Barcelona na manhã seguinte, provando a alegria do primeiro namoro. De regresso do outro lado do mundo, reconciliei-me com o lugar onde cresci e, remendadas as fendas, pude seguir em frente. Nessa manhã, enquanto tomava o pequeno-almoço, olhei para as paredes da cozinha cheias de sol e voltei a ouvir a canção que eu e ele escolhemos como postal ilustrado desses luminosos dias de férias, em que passeávamos juntos pelas ramblas, pelas avenidas à beira-mar, pelas bancas de fruta dos mercados. Recordei-me desse primeiro romance apenas com doçura, sem fazer caso dos embaraços que contaminam as recordações de uma paixão extinta. Deves-me ter ouvido a rir nesse dia, da troça ingénua que fazia das longas reuniões passadas em frente ao computador. Qualquer pretexto me arrancava uma gargalhada. Graças a ti.

É estranho escrever-te em papel depois de termos comunicado tão fluentemente por auscultações através da parede. Ao recorrer a palavras sinto corromper a naturalidade da nossa correspondência. Mas pelo tempo que levamos fechados nestas divisões acabamos por já não saber o que é o convencional. Há quanto tempo já estamos aqui fechados? Não consigo lembrar-me se alguma vez me cruzei contigo no elevador. Não sei como és, apesar de dormimos a poucos centímetros de distância. Nestas noites, toco na parede da cama e tenho nos dedos uma impressão de calor. É difícil de acreditar que durante tantos meses, ou talvez anos, estivéssemos tão próximos e partilhássemos as mesmas canções sem o sabermos.

Tenho medo de que aches que estou a exagerar. Começo a esquecer-me das regras de conduta social. Esta carta talvez seja um erro. Vou escrevendo-a linha a linha enquanto os dias passam, como se fosse um diário do presídio. Estou a dramatizar. Não estamos, ainda assim, totalmente confinados. Sempre podemos escapar para umas voltas curtas ao pátio da urbanização. Sei que gostas de cozinhar. Quando saio para esses passeios à hora do almoço sinto o cheirinho que vem da tua porta. Apetece-me tocar à campainha e fazer-me de convidado para almoçar contigo e conversar, ou apenas ficar em silêncio enquanto vamos escolhendo canções tuas.

Quando saía para uma dessas voltas de rotina, abri a porta do elevador e vi que tinhas deixado no apoio sob o espelho um maço de cigarros e um pacote de leite com chocolate. Percebi logo a referência. Bebi o leite enquanto atravessava o jardim em frente ao prédio. Não fumo, por isso o maço de cigarros continua aqui. Escrevi a data na base para não me esquecer. Nessa noite decidi preparar-me um jantar especial. Talvez o aroma do risotto que fiz tenha chegado à tua porta em forma de agradecimento, de convite. Pus a tocar alto essa canção dos pequenos vícios a que aludias com os presentes do elevador. Também a eles recorres para anestesiar o tédio. Eu tenho-me socorrido das tuas canções para esse fim, como sabes.

Entretanto, deixei de saber de ti. Passou uma semana em que me vertia na cama ao fim da tarde, de olhar posto numa nuvem raquítica em trânsito, e do teu lado nada vinha senão silêncio. A cidade mexia-se devagar e a noite demorava cada vez mais a chegar. Já não sentia a impressão de calor nem os acordes ao piano a soprar pelos poros da parede. Esforcei-me por encontrar nas obrigações quotidianas uma doutrina de ocupação do tempo, mas um desânimo ia sub-repticiamente sabotando-me a vontade. Acabava onde tinha começado, deitado na cama a olhar para a janela ou para os ângulos das estantes. Repeti bem alto as canções que tínhamos coleccionado até então mas não obtive qualquer sinal de ti e apenas me afundei mais um pouco. Lembrei-me que se as tuas canções não forem partilhadas com alguém apenas contribuem para cavar uma toca confortável.

Esta manhã de domingo, o sol entrava pela janela e aquecia os lençóis. Peguei no telemóvel e abri a aplicação que me mostra quem nas imediações do prédio está disponível para engate. A dias incertos recorria a este expediente sem nunca concretizar qualquer encontro. Não era permitido nas actuais circunstâncias, sabia-o. Percorria rapidamente no ecrã a lista de criaturas capturadas em pequenos quadrados, como antes me cruzava com elas em bares à noite. Nessa altura também nada acontecia. Estava bem assim. Sentia apenas falta do fluxo de caras e corpos sem nome e de me confundir nesse meio. Na noite seguinte, surgiu um quadradinho negro no topo, que a aplicação indicava estar muito próximo de mim. Não tinha cara nem nome mas pela assinatura soube que eras tu. Senti a tua falta, rebel prince. Encostei o telemóvel à parede e dediquei-te essa canção. Não demasiado alto. Já era tarde, não te queria acordar. No escuro do quarto, imaginei-me a regressar a casa depois de várias horas passadas em salas de música e luz estridente. Adormeci ao lembrar-me da profunda calma que sentia nessas voltas de madrugada por ruas desertas e ensopadas de chuva miúda.

Na manhã seguinte tinha no telemóvel uma foto tua. Era a paisagem da cidade a despertar que via da minha janela. Partilhávamos o mesmo horizonte do cativeiro. Corri para ela, abri-a, e debrucei-me demasiado ao tentar ver a tua, oculta por uma inútil e patética divisória de alumínio. Voltei a deitar-me na cama. Tinha de me arranjar para uma reunião importante dali a uns minutos. Seria um dia como todos os outros se não fosse aquela foto, um sinal teu em muitos dias. Como resposta, decidi enviar-te o complemento à tua vista expandida, o perímetro a que estava circunscrito: o meu quarto, a partir da cama onde me deitava sempre para te ouvir.

Voltámos a comunicar nos dias que se seguiram mas as canções foram ficando cada vez mais espaçadas e esquecidas, depois retalhadas, como farrapos de melodia presos a um gira-discos encravado. Desta vez, contudo, habituei-me mais facilmente à tua mudez. Resignei-me a ela como a outros tantos aborrecimentos deste confinamento.

Tinha agora a sensação de que havia algo novo por que esperar, que me puxaria para fora da cama quando isto tudo passasse.

Hoje, ao regressar a casa do supermercado, no átrio do elevador ouvi notas e acordes que escapavam pela tua porta. Os trechos que tocavas conduziam a melodia a becos de labirinto mas o som era claríssimo e isso atraiu-me. Deixei os sacos no tapete de entrada e aproximei-me de ti. A fresta junto ao chão era mais espaçosa do que o normal e vertia a luz oblíqua que entrava pela janela do teu quarto, igual ao meu, e te preenchia a casa. No escuro do átrio, produzia um efeito sobrenatural que me fez ajoelhar para ela. Quase encostei a cara ao chão. Queria ouvir mais de perto. Queria ver-te. Então ocorreu-me encostar o telemóvel à tua porta, rente ao chão, com a câmara sob a ranhura. E comecei a gravar. O plano estava cortado na metade superior do ecrã mas a imagem penetrava alguns metros pelo chão do teu quarto e captava uma sombra. Estavas sentado, o teu corpo embalado pela cadência melódica, com o ímpeto dos acordes que comandavas no teclado. Era o que lia na silhueta elíptica projectada no chão. Não desistias, e na segunda, terceira tentativa, a sequência saía perfeita. Não desistias e pensei que o fazias por mim, e que era esse o motivo especial por que tinhas escolhido aquela canção. Falava sobre a incapacidade de resistir a uma paixão absurda, como a que parecia ter surgido ao longo aqueles dias indolentes. Parecia, apenas, porque afinal era com uma sombra e por meio de canções que eu dialogava. Mas senti naquele instante que o ecrã do telemóvel se abria para um mundo mais real do que o que via da janela do meu quarto. Quando começaste a pronunciar as notas finais, não me consegui conter e acompanhei-te nos versos que fecham a canção

and smile in slow motion

with eyes in love.

Deves-me ter ouvido porque paraste de tocar, levantaste-te e senti os teus passos cada vez mais próximos. Eu fiquei paralisado mas um instante depois reparei que voltavas ao teclado. Aproveitei a tua hesitação para me levantar do chão e, com cuidado, entrei em casa. Peguei logo nesta carta, decidido a entregar-ta pela ranhura da porta. É apenas o relato da companhia das tuas canções, mas é o que de mais íntimo tenho para te oferecer. Não ligues às partes rasuradas. Ainda não é esta a hora de pôr por palavras coisas de que me posso arrepender. Coisas que apenas devem ser ditas de frente, num tempo como o que existia antes.

Quando isto tudo passar espero que continues a tocar para mim.

E espero ver-te
Rufus

Pedro Leitão

Deixa uma resposta