COMO SE CONSTRÓI UMA IDENTIDADE SONORA? DISCUSSÃO SOBRE O VÍDEO MUSICAL PUSH, DE KAZAKY

Neste mês do orgulho, vamos falar um pouco de ‘como embrulhar a ignorância com a bandeira LGBTI+’. A banda Kazaky não tem nenhum músico que se assuma publicamente com uma identidade queer, mas são grandes defensores das nossas causas. Quem os conhece sabe que a sua imagem de marca é o sapato de salto-alto que não lhes impede de fazerem coreografias fantásticas e movimentos arrojados. Considerando que nenhum dos membros que contribuíram para este vídeo faz parte da comunidade, torna-se ainda mais importante discutir como é que usaram a música e imagem para nos defender. O mote que abre o vídeo é a frase “how does it feel to be different” e isso é tão válido para quem se sente ostracizado como para aquele que exerce o seu poder e violência nos corpos. PUSH, o vídeo em análise, coloca este Mortal Kombat, porque muitas vezes é disso que se tratam, em debate, no centro da sua agenda. Como é que se constrói uma identidade sonora alinhada nas causas LGBTI+? Que referências é necessário estabelecer para que a mensagem seja ouvida? Vamos desconstruir estes pontos para pensar sobre a construção desta identidade sonora.  

PUSH é uma música muito simples, dividida entre um verso narrado e um refrão cantado. Repescada nas tradições da disco, em particular o tecno, é uma música agitada que transmite confiança, energia e poder. O uso do tecno não é aleatório porque o início histórico deste género está carregado de metáforas da ficção científica. Nas suas músicas os artistas dos clubes de Detroit mostravam visões de uma sociedade transformada e que procuravam relacionar com o universo da ficção. Neste vídeo o ambiente é sombrio não porque tenha robôs ou discos voadores, mas porque está tão próximo da realidade de muitas comunidades que nos faz sentir empatia. Qual é a diferença entre as situações de agressão que se vive, e imaginar neste vídeo um mundo onde a sociedade LGBTI+ é aprisionada em jaulas de ferro, acorrentada e tem tantas balas no interior do seu corpo que necessita de as cuspir? 

O que se torna assustador nas imagens é a veracidade e o quão próximo estão de nós. Felizmente os Kazaky equilibraram estas coisas com uma letra sobre a liberdade e a glória. A sua atitude durante a performance é de agarrar com ímpeto os opressores e até cantar aos seus ouvidos (para tentar que entendem a mensagem de uma vez por todas!). Os adversários neste combate estão sinalizados com as palavras “Fear”, “Ignorance”, “Hate” e “Violence” escritas nas suas roupas. A dor e o sofrimento da comunidade LGBTI+ é ainda ligada ao episódio da Paixão de Cristo, quando um dos opressores recebe uma coroa de espinhos (se a religião está ou não do nosso lado isso já é todo um outro debate, mas fica para outra altura).

Os Kazaky assumem, neste vídeo, o papel de personagens com identidades LGBTI+. Um primeiro sinal é durante o primeiro refrão quando os músicos avançam pelo palco em movimentos de vogue, sinalizando uma ligação à cultura dos bailes norte-americana. Outro aspeto ainda mais direto, é quando erguem uma bandeira com um arco-íris, símbolo da comunidade, e envolvem-na em torno do pescoço de um dos opressores em sinal afirmação. Todos estes elementos são reforçados pela atitude de drag que destabiliza as convenções, pois os Kazaky sempre foram conhecidos por estarem em palco de saltos altos. A dança é um campo ‘aberto’ para a performance de género. Existem algumas escolas de dança que se constroem na base de papéis de género e onde se assume que o homem tem gestos diferentes dos da mulher porque pretendem representar um casal normativo em palco. No caso deste grupo musical, os gestos dos Kazaky são sexualizados a vários níveis, desde os movimentos que fazem individualmente aos pares que criam entre eles (todos eles homens). Com a sincronização do ritmo da música com o impacto dos sapatos no chão, mesmo que não se ouçam são imaginados nas nossas mentes e dizem-nos que são homens confiantes nas suas masculinidades, eles cantam “My heels are my weapon”. 

Ao assumir uma posição queer, os Kazaky reconfiguram a música synthpop e trazem-na para o contemporâneo como forma de se ligarem à comunidade LGBTI+. Na história da synthpop, estes músicos eram para a eletrónica o equivalente do glam rock, porque se apresentavam muitas vezes com maquilhagem, roupa e adereços que os tornavam andrógenos ou travestidos (algumas vezes com propósitos políticos). No minuto 3:59, podemos ver Kazaky prestando homenagem aos Kraftwerk, colcando-se em linha, vestidos de igual e cantando quase sem gestos, assemelhando-se às personas androides (e muitas vezes andrógenas) que os Kraftwerk colocavam em palco. Ao mesmo tempo, Kazaky expressam a performatividade do género e da sexualidade da synthpop em diálogo direto com outras políticas de representação. Encontramos o orgulho do fetish sexual quando um dos membros se veste de joias e cabedal negro, tudo justo ao corpo e enquanto se acaricia no chão. Outro protagonista mais feminilizado, abana as ancas e usa um bastão remetendo, primeiro, para o teatro musicado norte-americano, e depois subvertendo essa ideia quando substitui o bastão por um chicote num gesto de fetish sensual. Não menos importante, é a alternância entre estas visões desconstruídas da normatividade e um outro dançarino que aparece como símbolo do aprisionamento da masculinidade tóxica no corpo musculado, preso às cordas de um paraquedas, o que sugere a ligação ao universo militar. Regressando ao título “Push”, os Kazaky querem dizer-nos que é necessário alcançar uma liberdade face ao policiamento dos corpos pela sociedade, e a necessidade de levar esta ideia ao limite para que possa ser rompida. 

Ao falar de géneros, sexualidades e da repressão e libertação da comunidade LGBTI+, os Kazaky tocam no tema da beleza. Quase no final do vídeo, visualizamos imagens de estátuas do período greco-romano que se partem e reconstituem. No gesto está implícita a destruição dos padrões clássicos de beleza. O orgulho LGBTI+ está na aceitação de que o belo é subjetivo, depende do ponto de vista, e não deve ser definido ao ponto de se tornar um instrumento de controlo. É certo que esta minha opinião pode ser diminuída quando olhamos para os Kazaky, homens de corpos definidos, musculados e com feições faciais que, no senso comum (seja lá o que isso for…), são considerados como bonitos e atrativos. Contudo, as roupas que eles vestem, os símbolos e as situações em que se colocam no vídeo nunca procuram afirmar um ideal de beleza acima de todos os outros. Nesta linha, a conotação de combate trazida pela música tecno, e a performatividade de género e sexualidade da synthpop, são usados como ferramentas para legitimar a importância do nosso orgulho e de lutarmos por direitos iguais na sociedade.

Para fechar esta discussão, quero referir quero problema do ‘lugar de fala’. Há o perigo de que se considere que, ao estarem a apropriar-se de valores, símbolos e pautas da comunidade LGBTI+ possam estar a aproveitar um discurso para vender um produto a uma audiência que, a princípio, poderia não ser a deles. No entanto, recentemente deparei-me com uma entrevista na internet onde os membros deram a entender que alguns dos membros eram queer e outros não, afirmando que “the reason we never answer this question is because we try to keep a kind of mysterious charm”. Tenho as minhas dúvidas, será que é charme ou receio de se assumir na Ucrânia, onde os direitos e as liberdades da comunidade LGBTI+ ainda são tão problemáticos? Considerando que estão numa posição com algum poder, dado o reconhecimento mundial que já alcançaram (recordo que já participaram, por exemplo, com Madonna), não deveriam dar o primeiro “push” nesse sentido? Isto faz-me lembrar o último vídeo da Rita Von Hunty, drag queen do académico Guilherme Terreri, quando diz que “aqui, nos nossos cenários onde dá para fazer luta, eu tenho um pouco de ‘ódio’ [muitas aspas] dessa galera discreta, sabe? Eu prefiro trocar a palavra discreta por cobarde. Porque a gente tem um papel histórico de transformar LGBTfobia em orgulho. Ta meus amores?” Por hoje é isto, orgulho das nossas identidades, músicas, sons, e até à próxima!

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