
O Institut für Sexualwissenschaft (Instituto para o Estudo da Sexualidade) foi um dos primeiros locais de investigação da sexologia. Esteve em funcionamento em Berlim numa esquina da Beethovenstraße de 1919 a 1933. Pioneiro e muito à frente do seu tempo, nele podíamos encontrar pessoas a viver, trabalhar e a receber acompanhamento clínico, desde terapias hormonais a cirurgias.
O espaço ocupado pelo instituto foi uma instalação para quem desejou fazer a transição médica há quase um século, mas também um refúgio para quem viveu sob perseguição do Parágrafo 175 da lei que tornava a homossexualidade um crime na Alemanha. Para melhor enquadramento atual, importa referir que a lei esteve em vigor de 15 de maio de 1871 a 11 de junho de 1994, com um pico de condenações durante o regime nazi. Ao todo, cerca de 140.000 homens foram condenados pela dita lei. De notar igualmente que, do outro lado do espectro, é difícil saber hoje exatamente quantas mulheres foram perseguidas e assassinadas pela sua orientação sexual nos campos nazis.
Como foi possível haver um instituto que há um século estudava e oferecia acompanhamento clínico a pessoas trans?
A história passa por Magnus Hirschfeld [na foto acima de óculos e com bigode, a segurar a mão do seu companheiro, Karl Giese], formado em medicina e que testemunhou na primeira pessoa o sabor amargo do preconceito. Hirschfeld foi um jovem judeu gay que trabalhou como médico militar e viveu junto de pessoas em sofrimento ao serem forçadas a esconder as suas verdadeiras identidades. Algumas chegaram inclusive a morrer nessa batalha de esconder quem eram. Quando o médico regressou à vida civil, começou a estudar sexualidade e identidade de género e a tentar encontrar maneiras de ajudar as pessoas que a sociedade rejeitava.
Enquanto Hirschfeld oferecia abrigo, emprego e tratamento médico a pessoas LGBTI, fez campanha pública por um maior reconhecimento e pelo avanço dos direitos desta população. Ele desenvolveu uma teoria de género e sexualidade que ainda hoje supera várias das ideias modernas sobre identidades trans. Sabia, por exemplo, que as mulheres trans não eram homens gay, e que querer vestir roupas ditas femininas não era um distúrbio sexual, mas uma expressão da sua identidade. Também o que hoje chamamos de pessoas não-binárias ou de género fluído tinham lugar nos estudos e na compreensão de Hirschfeld.
A ideia da fluidez de género está longe de ser um conceito moderno, como algumas pessoas conservadoras tentam vendê-lo. Hirschfeld foi inspirado no Simpósio de Platão, escrito há mais de dois milénios, onde, na criação do mundo, dizia estarmos divididos em indivíduos, e o amor é o nosso desejo inato de encontrar a nossa outra metade. Platão não tinha problema com homens cuja outra metade era outro homem, ou mulheres que procuravam outras mulheres, ou ainda pessoas cujas almas inatas eram diferentes dos corpos em que nasceram. O Amor era a busca por todas essas metades e encontrar aquelas que nos preenchiam plenamente. Hirschfeld acreditava assim que “o amor é tão variado quanto as próprias pessoas”.
Algumas das primeiras cirurgias que hoje chamamos de cirurgia de redesignação de género foram realizadas no instituto de Hirschfeld. Ele não as realizava, mas tinha pessoal médico a realizá-las de 1920 em diante. O instituto também atraiu visitas de pessoas como Christopher Isherwood, W.H. Auden e Lili Elbe, a mulher trans que foi imortalizada no filme The Danish Girl.
A ideia de progresso é a sensação de que estamos sempre a avançar e a evoluir social e culturalmente. Elementos da sociedade atual impactam obviamente a nossa compreensão da identidade de maneiras que Hirschfeld jamais poderia imaginar. A criação da internet, por exemplo, permitiu que as comunidades marginalizadas comunicassem entre si e se expressassem quando antes sofriam em silêncio. Estas novas comunidades criaram também o vocabulário LGBTI, permitindo-lhes encontrar a linguagem para expressar aquilo que sempre viveram. Mas é um real progresso?
Aprender com o passado para não repetir os erros no futuro
O perfil de Hirschfeld e o seu trabalho fizeram dele um alvo desde cedo. Tornou-se no foco do ódio preferido da direita e especialmente de nazis, sendo constantemente alvo de calúnias. Em 1920, numa palestra em Munique, um grupo espancou-o e deixou-no como morto na rua a sangrar. Na amanhã seguinte, ele próprio leu o seu obituário para pena da extrema-direita alemã.
Apesar das ameaças, da violência e da calúnia de que era constantemente alvo, Hirschfeld persistiu. Ao longo da década de 1920 o seu instituto cresceu e no final da década Hirschfeld organizou o primeiro de vários congressos internacionais para a reforma sexual. Palestrantes faziam parte de uma longa lista de líderes dos nascentes movimentos pelos direitos das pessoas LGBTI, a luta pelos direitos das mulheres e a ciência sexual.
O regime nazi voltou os seus olhos para Hirschfeld no início de seu reinado de terror. Ele representou uma ameaça tripla como um socialista judeu gay. Já em 1920, Hitler havia escolhido Hirschfeld como alvo, chamando-o de “porco judeu“.

A história de Hirschfeld termina com uma tragédia e um aviso para o futuro. A 6 de maio de 1933, o instituto foi cercado por membros e apoiantes do partido nazi. Sob o pretexto de proteger a sua juventude e cultura perante os moldes nazis, o instituto foi invadido e apreendidos os seus livros. Quatro noites depois, 20.000 livros da biblioteca de Hirschfeld foram queimados na Opernplatz. O busto de Hirschfeld que saudou visitantes do instituto também foi atirado ao fogo.
Hirschfeld não estava em Berlim, mas em Paris, em plena digressão mundial onde divulgava os seus estudos. Nesse percurso conheceu o segundo amor de sua vida, Li Shiu Tong, e os três – Li, Karl Giese e Hirschfeld – moraram juntos em Paris. Em 1934, por motivos de saúde, mudaram-se para o clima mediterrâneo de Nice. Hirschfeld nomeou na altura Li Shiu Tong e Karl Giese como os seus únicos herdeiros. Acabou por falecer em 1935.
Voltando à imagem acima, na verdade, a foto ainda aparece hoje em inúmeros livros escolares e de história, mas o que estava a ser queimado e exatamente porquê é, talvez não inocentemente, muitas vezes omitido. Tal como Hirschfeld lutou pela compreensão, empatia e celebração das pessoas LGBTI há um século, importa, em particular, manter as histórias trans vivas, para as mantemos longe das chamas do estigma e do preconceito.

Ep.178 – Pessoas trans e terapia hormonal, LGBTI de férias e… Visibilidade Bissexual! – Dar Voz a esQrever: Notícias, Cultura e Opinião LGBTI 🎙🏳️🌈
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