Como se constrói uma identidade sonora? Discussão sobre o vídeo musical BONEKINHA, de Gloria Groove

Gloria Groove, uma das artistas drag mais conhecidas no mundo da música, começa o seu novo vídeo musical numa cena onde abre uma caixa de cartão com uma boneca no seu interior. Pensar fora da caixa é uma expressão bem conhecida, pode ser sinónimo de criatividade, maturidade ou inovação, e é muito adequada para este vídeo. Também pode ser estar fora da caixa, do padrão e do que é esperado, algo que irei discutir mais adiante. Não é de agora que a persona GG, “metade drag e metade rapper” como o músico Daniel a apelida, tem vindo a desbravar estilos musicais e modos de se apresentar em palco. Conhecida por começar muitas das suas músicas e colaborações com o chamamento “Gloria Groove” de modo entoado, é nas suas combinações entre o lírico e o rap que expressa diferentes papéis de género, quebra barreiras em relação ao corpo e ao prazer, e fornece um outro olhar sobre a sociedade brasileira a partir de uma perspetiva queer. 

BONEKINHA é a música que assinala um novo rumo na carreira da artista. GG diz que agora é Lady Leste, um alter ego que pretende ser uma homenagem a todas as mulheres que provêm da Zona Leste do Brasil, o seu local de origem. A música tem a participação de Mirella, uma jovem de 12 que é irmã da rapper Drik Barbosa com quem GG havia colaborado. O vídeo musical foi realizado por Samy Elia e é mais uma grande produção brasileira que procurou começar a estabelecer quem é Lady Leste, quais as suas influências musicais, estéticas e culturais, e para onde GG procura conduzir o seu trabalho. A que soa esta boneca? Qual a sua voz, o que tem para nos dizer e como a faz parte da sua atuação? Esta é uma história das periferias do Brasil, ou um conto de ficção científica de teor crítico? Vamos desconstruir estes pontos para pensar sobre a construção desta identidade sonora.  

O riff de guitarra que abre o vídeo convida-nos a um jogo duplo entre o circo e o gótico. A agressividade do instrumento, pela sua distorção, é dotada de uma sensibilidade punk que é desviante e rebelde, ligando-se ao cabedal, à escuridão dos espaços e à sua potencial criminalidade. Porém, o desenho melódico soa a circo, tornando tudo mais jocoso, cómico, e transformando a bonequinha na marioneta. É esta sonoridade e o ritmo de funk brasileiro que atravessa todo o vídeo numa estrutura de verso e refrão onde GG descreve a sua nova persona. Lady Leste faz pirraça, sacanagem e é cavalona, o que explica todos os locais onde a encontramos: o cibercafé onde a pornografia é proibida, mas as relações íntimas acontecem por trás de cortinas ou na casa de banho; as ruas escuras, isoladas, onde dança com as suas bailarinas. Os dois momentos dão-nos o contexto de subúrbio que a Lady Leste representa, espaços de transgressão com protagonistas queer, algo também ligado ao funk carioca. Não devemos esquecer que o ritmo usado neste género tem semelhanças com outras práticas africanas, tendo sido popularizado nas favelas do país, local pobre e periférico que GG incorpora na sua identidade sonora. 

Se por um lado convoca as suas raízes, a artista liga-o à artificialidade do ciberespaço. Durante um momento a cantora é vista no interior de um videojogo que ela própria joga no seu telemóvel. A transição é feita por uma repetição da letra ó de “olha lá”, como se fosse um disco riscado, que em conjunto com a distorção na imagem revela a condição cibernética em que ela se encontra. Isto solidifica o facto de ser simultaneamente objeto e sujeito. Há nesta atitude um gesto de empoderamento e controlo da sua identidade, pois Lady Leste ‘não está a ser jogada’ por outra pessoa, não é o avatar de ninguém. A cantora reitera o aspeto múltiplas vezes na letra quando explica que os outros podem envolver-se com ela, mas só até certo ponto, pois ela também dispara quando é preciso. Isso é literal, porque o verso termina “Toma! Hoje tu beija a lona”, ao som de um disparo onde junto com a sua voz mistura-se outra mais grave, num hábil processo de multiplicação sónica das identidades de género. É quase como se fosse um momento em que ela, drag, revela ser também um homem gay, colocando GG e Daniel em diálogo e partilhando o palco.    

Não podemos esquecer o papel que Mirella tem na música. Apesar da idade, não há muito de frágil na sua voz, a intensidade e quase agressividade são contrabalançadas pelo timbre jovem dos seus 12 anos. Canta o refrão na terceira pessoa e diz que ela, a Lady Leste, não sabe brincar. Toda a letra está repleta de expressões passíveis de conterem conotações eróticas e são um convite à chamada “audição errada”, quando percebemos uma coisa que, à partida, não era o sentido sugerido. Eu diria que o “errado” seria o sentido não erótico, brincar é aqui sinónimo de uma relação sexual, sem dúvida. Ainda assim, Mirella, sendo uma criança, pode convocar para muitos ouvintes a inocência e jovialidade da própria boneca, e sendo Lady Leste uma homenagem à adolescência da cantora não me surpreenderia se isso tivesse sido propositado. Tal como a própria figura da drag, que destabiliza as identidades, a bonequinha faz a sua ligação ao ciborgue, à figura do objeto animado e com vida, que alterna entre o mundo real e a fantasia cibernética. Lady Leste é criança, adolescente e mulher, e tudo isto afina-se com um toque da rebeldia do punk rock e da sexualidade do funk carioca.

Estava a ler uma entrevista onde ela diz que Lady Leste representa tudo o que ela quis ser na sua infância e adolescência, mas não pôde. Neste gesto de imaginação de ‘o que poderia ter sido’, torna-se mais potente a presença do punk, este movimento de ir contra o prescrito, tanta na música como na sociedade. Com esta atitude GG revela ser muito ciberpunk no som e no discurso. A sua persona propõe ser do Leste, mas ir mais além, podia estar formatada antes só que agora saiu da caixa, é retro e futurista. Não sei se esta afirmação identitária e também política terá repercussões sonoras, ou se no seu álbum as letras transgressoras vão ser acompanhadas de fórmulas pop. Esse é o problema das indústrias musicais, é que quem entra demasiado passa de sujeito livre a artista condicionado, regressa à posição de boneca, ou melhor, de marioneta. Isto faz-me pensar que talvez uma das grandes diferenças entre o mainstream e a arte queer, é que a primeira orienta-se por padrões e a segunda procura defender a polifonia. Nesse sentido, como pode a arte queer fazer parte dela? Esta boneca está pronta para dar, “toma”, as músicas que os outros esperam dela, ou pronta para fazer “pirraça” e defender a sua identidade queer através da música? Estarei aqui para ouvir, até lá.

Por André Malhado

Musicólogo, músico e comentador cultural.

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