Entrevista a Rafael Fernandes: “A minha ideia com este álbum sempre foi mostrar a realidade humana, independentemente da minha sexualidade ou expressão de género”

Rafael Fernandes, músico que há alguns dias tive a oportunidade de escrever umas palavras, aceitou participar nesta entrevista onde falámos sobre música, metal e a sociedade atual. Falou do seu mais recente trabalho, influências artísticas e experiências pessoais relativamente à aceitação e/ou discriminação baseada no género e/ou sexualidade. 

Importa recordar que este ano assinalam-se os 40 anos da despenalização da homossexualidade em Portugal! Como não devemos deixar passar o momento em branco, aproveitámos para abordar o assunto. Não percam, texto na íntegra de seguida:

Raphael and the Thorns é o teu novo projeto musical. Podes apresentar-te à comunidade do esQrever e falar-nos um pouco desta tua iniciativa artística, de onde veio a inspiração para o nome e a base para a criação do álbum?

O meu nome é Rafael Fernandes, tenho 28 anos, sou cantautor (para além de consultor de telecomunicações). Sou gay e apesar de me considerar homem cis, identifico-me como gender-nonconforming. Tentando ser breve, e sabendo que não vou conseguir, Raphael and the Thorns só ganhou forma depois de várias tentativas frustradas de criar bandas com outros indivíduos que não partilhavam a minha visão. Com isto, inspirei-me em “Florence and the Machine”, “Marina and the Diamonds” e “Nick Cave and the Bad Seeds” para transformar o meu projecto solo na altura, “Raphael Thorne”, que era mais um outlet para baladas e canções menos pesadas, num projeto solo que pudesse tentar ser mais escuro e pesado. 

Quais são as tuas influências musicais e, entre elas, tens alguns músicos queer que tenham marcado o teu percurso musical? 

Tenho várias, dependendo da faceta da minha musicalidade que estamos a analisar. Para a voz, tenho referências como a incrível Floor Jansen dos Nightwish ou o fantástico Einar Solberg dos Leprous. Para o instrumental, tenho Paradise Lost, Swallow the Sun, Draconian, Nightwish e Epica como referências. A única referência queer que tenho no meu leque vem da Amanda Palmer, uma cantautora extraordinária, que me inspirou sempre a ser quem sou, a não ter medo de pedir ajuda, e a ser sempre honesto na minha música.

O género do metal está marcado por muitos estereótipos de género, entre estes o de uma expressão de masculinidade tóxica. Como te sentes relativamente a isso, achas que a tua forma de estar e a tua música trazem algo de diferente ao meio musical?

Penso que as coisas estão progressivamente a mudar, e isso é notório mais no conteúdo musical do que propriamente na apresentação dos artistas. Bandas como Swallow the Sun ou Leprous são incrivelmente introspetivas nos seus temas, usando a música como catarse para a dor pessoal. Apesar de achar que ainda existem poucos artistas queer no meio do metal, não tenho dúvidas que estamos num bom caminho. O que o Rituals, e eu por extensão, tenta trazer ao mundo é uma dose de empatia. Independentemente da minha sexualidade ou expressão de género, eu sou um ser humano que passou por eventos que me marcaram e isso deveria tocar aqueles cujos corações estão abertos para ouvir.

Mencionas que o Rituals é um álbum muito pessoal e é impossível não reparar no caráter sofredor, melancólico e na marca de solidão que se sente ao ouvir. Há um percurso musical e biográfico que pretendes transmitir aos teus ouvintes. Na dor do Raphael há, então, uma parte que é a dor do Rafael?

Toda a dor do Raphael é a dor do Rafael. É simplesmente dramatizada e musicalizada para o contexto em que existe. Mas todas as sensações e sentimentos passados nas músicas são completamente honestos.

Eu acho que um ouvinte queer se vai rever em canções como a “As the Wheel Turns” ou a “Worlds Apart”. Quem é que já não sentiu, na comunidade LGBT, que iria ficar sozinho para sempre? Quem é que já não esteve apaixonado por alguém que não sentia o mesmo?

Este ano celebramos os 40 anos em que foi promulgada em Portugal a lei que pôs fim à criminalização da homossexualidade. Achas que vivemos num meio social que aceita a diversidade de género e sexualidade ou há ainda um longo percurso a percorrer?

Sinto que estamos numa mudança de paradigma, e que cada vez mais as pessoas estão abertas à possibilidade de haver existências e identidades diferentes da sua. Não obstante, acho que temos de continuar a batalhar para tentar conseguir uma igualdade social, em que somos vistos pela sociedade simplesmente como pessoas, e não como a nossa sexualidade ou expressão de género.

No Facebook vi, há tempos, que procuraste por músicos para fazerem uma tour contigo. Reparei que foste muito direto na tua posição e dizias que tinham que ter “0 problemas em ter um cantor queer” e que não irias tolerar LGBTfobia. Queres falar um pouco sobre esta questão, já ouviste comentários discriminatórios, que “não soaram bem” e te fazem agora tomar algumas precauções?

Já ouvi algumas coisas, mas em contexto de trabalho e nunca direcionadas para mim. No entanto, sinto que alguém que “pratique” LGBTfobia é alguém que tem dificuldade em criar empatia com pessoas diferentes de sim. Isto faz-me sentir pouco à vontade em entregar o meu ser, que são estas músicas, a estes indivíduos.

Sentes que existe liberdade da parte dos músicos queer para se expressar abertamente ou pensas duas vezes antes de escolher um tópico para as tuas canções e a respetiva abordagem?

Depende um bocadinho do género musical e da audiência, penso eu. Acho que os músicos queer devem lutar para se expressar abertamente, e nunca deixar de escrever as canções que querem escrever por medo de represálias, mas devem fazê-lo conscientes de que estas podem existir.

Neste álbum, que habita um mundo fantástico, e diria até mágico, não abordas diretamente questões de género ou sexualidade. Pensas, em obras futuras, dirigir-te mais diretamente ao ouvinte queer ou preferes manter-te, pelo menos por agora, nos imaginários místicos e metafóricos?

A minha ideia com este álbum, e com os próximos, sempre foi mostrar a realidade humana, independentemente da minha sexualidade ou expressão de género. Eu acho que um ouvinte queer se vai rever em canções como a “As the Wheel Turns” ou a “Worlds Apart”. Quem é que já não sentiu, na comunidade LGBT, que iria ficar sozinho para sempre? Quem é que já não esteve apaixonado por alguém que não sentia o mesmo? E isto não são experiências somente queer, mas são situações em que nós nos encontramos mais vezes que os cis-heteros.

Na minha visão, Portugal tem uma percentagem muito reduzida de músicos assumidos publicamente quando comparando com outros países lusófonos, por exemplo, o Brasil. Tens a mesma perceção? Porque achas que isso acontece?

É uma pergunta interessante. Tenho uma perceção idêntica, mas penso que opinar sobre este assunto pode levar a uma má interpretação das minhas palavras por parte dos leitores. Digamos apenas que os nossos valores sociais diferem, e talvez seja essa a explicação.

Queres deixar uma última mensagem aos leitores do esQrever?

Primeiro, oiçam o Rituals. Por favor. Não peço só por ser o artista e o intérprete, mas peço também porque acho que consegui fazer um trabalho sólido e mostro que o metal não é só fúria e raiva e violência física, mas também pode ser algo melódico, melancólico e, em algumas partes do álbum, romântico. Ficar-vos-ia eternamente grato se o fizessem e, caso o façam, oiçam de coração aberto. Podem sair surpreendidos. Segundo, como diria uma professora minha: façam o favor de serem felizes!


Poderão escutar o álbum Rituals nas diversas plataformas de streaming e de compra de música.

Por André Malhado

Musicólogo, músico e comentador cultural.

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