O Feminismo é trans inclusivo

Num mundo em que se fala cada vez mais de interseccionalidade, há movimentos que se posicionam de tal forma que, com o passar do tempo, me parecem mais dissimulados quanto à sua intenção. Noto uma crescente resistência aos avanços que o mundo tem assistido no que toca à defesa dos direitos humanos. Entre eles, os feministas e os trans.

Surgiu esta semana um texto da autoria de Francisco Norega em nome da plataforma Guilhotina e onde justifica por que esta não abandonará a Liga Feminista do Porto (LFP) “à fogueira“, apesar de, “não aborda[r] a questão trans, nem LGBT“. Podemos, à primeira vista, acreditar que este possa ser um não-problema. Na realidade, a LFP partilhou nas suas redes durante o Mês do Orgulho uma mensagem onde reafirmou “a importância da mulher lésbica, tantas vezes excluída e invibilizada, nas discussões teóricas e nas celebrações públicas.” Mas este aparente e mero foco único nas mulheres lésbicas pode ser também interpretado como exclusão das restantes que se inserem nas siglas LGBTI+. Sim, há mulheres lésbicas, bissexuais, trans e/ou intersexo. E esta escolha parece-me ser cada vez menos inocente, especialmente quando percebemos que a LFP já usou – e reiterou – a expressão “homens biológicospara mencionar mulheres trans.

Portanto, além de não mencionarem – de todo – na sua plataforma feminista identidades trans, usam expressões altamente ofensivas e descredibilizadas. Se juntarmos esse facto à única publicação merecida à população lésbica, quase parece evidenciar nas entrelinhas que as únicas mulheres LGBTI validadas pela LFP são as lésbicas. As restantes não serão vistas como mulheres dignas de se inserirem na luta feminista? Mais, é a luta feminista verdadeiramente digna se não incluir as pessoas trans?

As vivências podem ser distintas, mas possuem uma opressão comum

E voltemos à interseccionalidade. Leio por vezes argumentos de que mulheres trans não partilham das mesmas vivências das restantes mulheres cis por terem sido entendidas como sendo de outro género e usufruído desse estatuto durante parte das suas vidas. Nem sempre o dizem explicitamente, mas fica no ar a ideia de que não reconhecem as mulheres trans como mulheres. Não são “mulheres puras”, ou “mulheres reais”, afinal de contas são vistas e tratadas como “homens biológicos”. E isso é profundamente errado, e é-o mais quando percebemos a importância que as palavras escolhidas têm nas nossas próprias identidades. Certamente que as vivências entre mulheres cis e trans são distintas, mas tal pode ser dito também de todas as restantes vivências, sejam elas sociais, culturais, racializadas ou de classe. E não é por isso que deixam de ser abraçadas por estes movimentos. Mais, as mulheres trans encontram-se entre as mais discriminadas e violentadas em todo o mundo, se esse não for critério suficiente para a inclusão e empoderamento das mesmas, qual será?

Não deixa de ser curioso como alguns destes movimentos se tentam descolar da misógina, machista e, sim, transfóbica extrema-direita, sem entender que partilham com ela a exclusão de quem mais coloca em causa a sua ideologia. A igualdade de género, os papéis de género, o próprio conceito de género cristalizam-se na luta identitária, de afirmação feminista e de Orgulho das pessoas trans. A violência específica que sofrem desde crianças é consequência disso mesmo, do enorme atentado que são, só por existirem, contra o status quo. Sim, não há feminismo com exclusão de quem mais ‘transgride’ os conceitos de misoginia, machismo e de género. Por isso mesmo, o feminismo quer-se também, mas não só, trans inclusivo.

Este perigoso aproveitamento de ideologias conservadoras embrulhadas em lutas feministas, além de enfraquecer o movimento, está longe de ser novidade. Nos últimos anos tem havido uma ascensão de movimentos feministas que excluem pessoas trans, ao ponto em que alguns deles foram excluídos de celebrações do Pride. Em Londres, por exemplo, um desses grupos conseguiu invadir a Marcha em 2018 e inclusive colocar-se diante da mesma. Num dos seus cartazes lia-se: “transativismo apaga lésbicas“. O que, obviamente, remete mais uma vez para o único foco dado à luta LGBTI+ mencionado atrás pela LFP. Coincidência?

O embelezamento de ideologias bacocas

O que está aqui em causa é a entrada destas retóricas num discurso embelezado com outras bandeiras feministas como a igualdade de género ou o fim da violência doméstica. Pelo caminho confundem-se e os primeiros são normalizados lado-a-lado com os segundos.

Questionar a razão pela qual “pessoas trans e não-binárias podem escolher estar em organizações sem pessoas cis“, mas “pessoas cis não podem estar em organizações sem pessoas trans” por um coletivo intitulado revolucionário como a Guilhotina, é não entender o conceito interseccional (!) de minoria, integração, empatia e empoderamento.

As minorias criam espaços seguros precisamente para se protegerem da discriminação e da violência que sofrem fora desses espaços. Criam-nos para interagirem entre pares, se reconhecerem em outrem, livremente. Há espaços e momentos exclusivos para essa interação fulcral para um baixar, eventual, de defesas e poder conquistar a confiança e a segurança suficientes para se ser quem é. Haverá também outros momentos e espaços de partilha com outras entidades e pessoas fora desse grupo, no sentido da formação, do conhecimento, de uma conversa com quem lhes deseje escutar. É pois de lamentar a distorção feita para justificar a exclusão de uma luta que, por tudo o que foi dito, inclui, obviamente, pessoas trans.

Não se trata de exigir uma ‘inclusão forçada’, como se várias entidades não pudessem ter distintos focos nas abordagens e nos temas que discutem. Mas o silêncio é tão ensurdecedor nalgumas destas organizações que se torna difícil justificar uma ausência absoluta tão gritante e de um ponto tão fulcral ao longo dos seus anos de existência que nem uma menção simbólica lhes merece atenção. Não se julgue, no entanto, que a LFP é caso único em Portugal, não é. A luta quer-se una. Sejamo-la.


Ep.197 – 25 de Abril SEMPRE! no teatro & The Tortured Poets Department Dar Voz a esQrever: Notícias, Cultura e Opinião LGBTI 🎙🏳️‍🌈

O CENTÉSIMO NONAGÉSIMO SÉTIMO episódio do Podcast Dar Voz A esQrever 🎙️🏳️‍🌈 é apresentado por nós, Pedro Carreira e Nuno Miguel Gonçalves. Celebramos os 50 anos do 25 de Abril, com todo o contexto atual triste e da transgressão da comunidade LGBTI e também da arte, nomeadamente das peças de teatro Quis Saber Quem Sou de Pedro Penhim, em cena por todo o país, e Catarina e a Beleza de Matar Fascistas de Tiago Rodrigues, agora em livro. No Dar Voz A… como não podia deixar de ser, temos… Taylor Swift e o seu novo e antológico The Tortured Poets Department. Ah, e não podiamos deixar de congratular Nymphia Wind, the next drag superstar!!! Artigos mencionados no episódio: 25 de Abril, o ponto de partida para o Orgulho LGBTI O 25 de Abril Também Passou Por Nós (e nós por ele) Nymphia Wind elogiada pela Presidente de Taiwan na vitória em RuPaul’s Drag Race Sasha Colby, vencedora de RuPaul’s Drag Race: “Sou uma mulher trans e uma drag queen. Sou a personificação do que querem erradicar” AbriLés 2024: Celebrar a Visibilidade Lésbica em Portugal EMIS24: Se és homem, mulher trans ou pessoa não binária que se sente sexualmente atraída por homens, este inquérito é para ti! CRONOLOGIA LGBTI DO 25 DE ABRIL 1974: 25 de Abril 1982: Homossexualidade descriminalizada 1999: Homossexuais e bissexuais podem servir abertamente nas Forças Armadas 2004: A orientação sexual é incluída na Constituição Portuguesa no artigo 13º – Princípio da Igualdade 2010: O Casamento é estendido a casais de pessoas do mesmo sexo 2015: Parlamento aprova adoção e apadrinhamento civil de crianças por casais do mesmo sexo 2018: Lei da autodeterminação de género 2021: Fim da discriminação na dádiva de sangue 2023: Criminalização das “terapias de conversão” INQUÉRITO EMIS2024: https://maastrichtuniversity.eu.qualtrics.com/jfe/form/SV_00TU5rrPxK3dzoO Jingle por Hélder Baptista 🎧 Este Podcast faz parte do movimento ⁠#LGBTPodcasters⁠ 🏳️‍🌈 Para participarem e enviar perguntas que queiram ver respondidas no podcast contactem-nos via Twitter e Instagram (@esqrever) e para o e-mail geral@esqrever.com. E nudes já agora, prometemos responder a essas com prioridade máxima. Podem deixar-nos mensagens de voz utilizando o seguinte link, aproveitem para nos fazer questões, contar-nos experiências e histórias de embalar: ⁠https://anchor.fm/esqrever/message⁠ 🗣 – Até já unicórnios #25deAbril #25deAbrilSempre #NymphiaWind #DragRace #TaylorSwift #TTPD — Send in a voice message: https://podcasters.spotify.com/pod/show/esqrever/message
  1. Ep.197 – 25 de Abril SEMPRE! no teatro & The Tortured Poets Department
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