Como se constrói uma identidade sonora? Discussão sobre o vídeo musical BIXA PRETA PARTE 2, Linn da Quebrada e Jup do Bairro

De tempos a tempos, as culturas sofrem transformações, umas mais profundas do que outras, mas todas igualmente importantes. Nestes processos, muitas palavras mudam o seu sentido e criam-se nuances que, a cada período, expressam um novo de significado. Os termos pelas quais se nomeiam as pessoas criam e produzem formas de olhar, no entanto, apesar de nos incluirmos em sociedades há, constantemente, fricções sobre o que queremos realmente dizer. Peguemos no termo ‘mana’, apropriado por grupos de pessoas sem terem necessariamente uma identidade de género feminina para se auto-denominarem. Recordam-se certamente do debate que se gerou recentemente quando António e Bruno do Big Brother português usaram o termo, e certas figuras da sociedade, que não me apetece chamar pelo nome, insurgiram-se contra o ato… O mesmo acontece com as palavras bicha, preta, favelada, palavras que assumem em certos contextos um teor negativo e discriminatório, e várias vezes são um gatilho para a violência. Linn da Quebrada faz questão de usar os termos propositadamente para lhes dar um outro sentido, um mais forte e positivo. Virando do avesso as posições de opressor e oprimido, a cantora traz-nos BIXA PRETA PARTE 2, um dueto que faz com Jup do Bairro para mostrar, precisamente, que os nomes que damos às pessoas, às coisas e ao mundo em geral, têm implicações severas nas nossas vidas.

As músicas de estúdio e a do vídeo, a parte 1 e 2 respetivamente, pertencem a universos distintos. No álbum de 2017, o ritmo é poderoso, enérgico, e a letra exige muito menos atenção porque serve para nos levar, diria que é mais pop. Para o vídeo musical, Linn da Quebrada e Jup do Bairro juntam agora as suas vozes aos instrumentos soturnos e aos tons desafinados, para nos conduzir numa jornada pela destruição do macho alfa, tóxico, que vê nas bichas um alvo a abater. Nesta recriação imaginária, os músicos incluem uma gravação que dificilmente podia ser mais explícita do que é. Nela ouve-se: “Mayday, mayday, eu fui baleado e meu inimigo está se aproximando, eu preciso de reforço”, seguindo-se o riso maquiavélico de Jup. A substituição do opressor pelo oprimido é uma transformação dos termos de bicha, preta e favelada, três indicadores de exclusão social e sofrimento que são transformados em autodeterminação e poder. De onde vem esse poder, perguntamo-nos? Acho que é claro que vem da imaginação e da criatividade, que no vídeo é aparece através do mundo dos videojogos. 

Da lufada hipnótica que nos invade no início da música, é a voz que canta a “sua destruição”, a do macho, claro, que fica a saltitar que nem uma bola de ping pong pelos nossos ouvidos. O som é interrompido pelo ruído, porque agora entrámos no ciberespaço, e isto recorda-me os tempos remotos da internet em que o som da conexão, o dial-up, avisava que a linha telefónica havia estabelecido um canal com a rede digital. A estética musical explora estas marcas da tecnologia através dos timbres que soam sujos, como se estivessem cheio de granulado, e que em termos culturais designa-se de low-fi. Um género musical que o faz é o vaporwave, e que está, em quase todos os aspetos, presente nesta obra. Os sons ‘antigos’, os ícones de computador dos primórdios do Windows, a qualidade de imagem pixelizada, a sobreposição de referências: tudo é remanescente dos vapores que navegam no digital, das incertezas que o vaporwave procura construir

Mas há um ponto único em Linn e Jup, e isso é o disparo da pistola. O refrão da música, “Bixa preta (tra)” é simbólico da agressão aos corpos queer. A frequência com que aparecem os “tra, tra, tra” é onomatopaico, quer que sejamos capazes de ouvir o som de uma metralhadora, e na minha opinião consegue-o de uma forma brilhante e muito musical. No vídeo há ainda o som de disparo de uma pistola, seguido da imagem de um cenário tipo videojogo de Mortal Kombat em que se escolhe uma personagem para o combate. Não é por acaso que o jogo em questão ficou conhecido, por um lado, pelo seu fotorrealismo que conseguia mostrar, mesmo com as dificuldades tecnológicas da altura, pessoas credíveis e cenários realistas. Por outro, isso causou um grande impacto porque é violento, muito sangrento, braços e cabeças são cortadas, rebentadas e os corpos são torturados porque essa é a sua forma de entretenimento. O que dizer desta ligação entre música e cultura de violência? Só posso relembrar que Linn da Quebrada e Jup do Bairro criam a partir de um contexto de violência profunda à comunidade LGBTI+ no Brasil, e que apesar do grito de esperança da música continuam a querer que não nos esqueçamos que é ficção, a realidade é bem mais dura…

Numa visão algo esperançosa da experiência de negritude, vários autores, entre eles eu próprio, têm olhado para a ficção científica em busca de formas para os corpos gerarem sinergias com as ferramentas tecnológicas. Para ‘escapar’, ou como prefiro, se adaptar às vicissitudes, Linn da Quebrada e Jup do Bairro fazem-no quando no final do vídeo observam as suas memórias a partir de uma visão exterior. A música permite a mesma experiência quando soa a uma gravação antiga, porque nos recorda o nosso passado, que agora é ouvido com a devida distância. Se sofremos na primeira pessoa, no momento, temos uma reação e leitura diferentes da que acontece na terceira pessoa. As memórias são, em BIXA PRETA PARTE 2, próteses externas, é quase como se ser a bicha, preta e favelada que, no presente, sofre porque estas categorias são inaceitáveis para uns, no futuro, são agora outra coisa. Por isso é que nas últimas imagens, dizem-nos que “mission passed”, o videojogo termina e nós fazemos “Level Up”. À música é dada a capacidade de reinventar as expressões de género e as orientações sexuais, precisamente porque o som tem a sua própria identidade que se une a nós, que é parte de nós, com que nós nos identificamos. Na música do álbum, “Bixa preta”, identifico-me com a bicha cujo corpo é livre, no vídeo musical, “Bixa preta parte 2”, com a força de quem precisa, em certos alturas da vida, revoltar-se contra os opressores. “Fiquem todas juntas, unidas” é o que nos cantam, porque somos “manas”, e temos o direito de viver as nossas vidas à nossa maneira. 

Por André Malhado

Musicólogo, músico e comentador cultural.

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