Aos homens casados armariados com quem me cruzei

Aos homens casados armariados com quem me cruzei

Numa das cenas finais da aclamada série The Staircase surgiu um diálogo que me arrepiou. Não só porque me reconheci nele, mas porque também reconheci imensos homens casados armariados com quem me cruzei na vida. A prisão, mantida por uma perpetuada mentira, pode parecer-nos uma primeira salvação – e muitas vezes ainda o é – mas, ao torná-la inerente ao nosso próprio ser, facilmente se torna uma sentença para a vida.

Este texto não é, pois, sobre a série que conta a história da misteriosa morte de Kathleen (Toni Collette), uma mulher de sucesso financeiro casada com Michael (Colin Firth), um escritor que se revela bissexual e se torna no principal suspeito da morte da mulher. Este texto aborda antes as questões que Michael levanta nos últimos minutos da série. Porque Michael nunca terá contado a Kathleen sobre a sua orientação sexual e os casos que teve fora do casamento com outros homens. E o que está em causa não é se houve ou não razões que levaram à morte (ou assassinato) de Kathleen, mas sim uma abordagem sobre quem nos conhece de verdade e as armadilhas que a própria vida nos prega para mantermos segredos como arma de sobrevivência.

Para contexto, o diálogo em causa:

Kathleen: Por que não me disseste?
Michael: Houve uma altura em que eu sabia quem era. Mas foi só um momento. E depois foi uma coisa atrás da outra. Afastei-me cada vez mais desse momento. E depois apareceste tu. Bem distante desse momento. Não foi mentira. Mas não era a totalidade. Será que duas pessoas se chegam realmente a conhecer? A maior parte é poeira para os olhos. As pessoas não sabem com quem estão.
Kathleen: [mudo] Por que não me ajudaste?

Muitos só queriam ser ouvidos

Nestes anos não foram poucos os homens armariados por detrás de um casamento heterossexual com quem me cruzei. Muitos só o soube mais tarde, por chamadas em que precisei estar em silêncio para ver, diante de mim, uma qualquer mentira ser proferida por aqueles lábios nervosos. Outros houve que fizeram questão de me falar da mulher ou das crianças por fotografias que tinham na carteira. Estariam em viagem de trabalho ou com uma outra qualquer desculpa. Na realidade, apenas queriam alguém que os escutasse. Apenas queriam ser ouvidos na sua invisibilidade, sem julgamentos. Não estou aqui para isso, muito pelo contrário.

Escrevo sim estas palavras para partilhar como esta é uma realidade com a qual houve tempos que temi poder viver. Seria, aos olhos de alguém desesperado, simples sustentar uma mentira, uma omissão que tornaria tudo aparentemente tão mais simples. Não para mim, como pessoa, como ser, mas na forma como lidaria com o meu exterior, com a expectativa social e familiar. Por ter estado tão perto desse caminho, entendo como há quem ainda hoje em dia caia nele. Naquele novelo de mentiras, omissões e histórias que sustentam uma persona que não somos nós. Onde por vezes confundimo-nos com ela, mas o tempo trai-nos e acabamos, com desencantamento, por perceber que jamais seremos aquilo que dizemos ser. E se falo do presente, ainda mais falo das gerações anteriores, aquelas que viveram perseguidas e escondidas daquilo que sempre foram e que ainda hoje são. A mentira como ato de sobrevivência é tragicamente real, basta olhar em redor.

Os locais clandestinos são espaços de sobrevivência

Também por isso os locais de encontros e de engate, clandestinos, escondidos, dissimulados fazem parte de uma cultura queer entranhada e empenhada em arranjar momentos e espaços de sobrevivência. Pois eram – e são – balões de oxigénio para uma vida de fachada, de mentiras e de meias verdades, seja qual for o contexto. Um recurso, quantas vezes usado a medo, para manter à tona um pouco da chama daquilo que sabemos ser.

Paira também sobre nós a ideia de que, eventualmente, possamos ter sido responsáveis por injustiças. Todo o enredo oculta uma história que jamais poderemos contar. E quem está ao nosso lado, por mais amor que haja entre ambos, nunca é totalmente pleno. Porque, tal como Michael, não conseguimos ser plenamente honestos com as mulheres que nos amaram e com aquelas que ainda nos amam. E nós a elas. E isso também alimenta a nossa dor, o nosso arrependimento, o mais puro desprezo que sentimos por nós mesmos. Daí até surgirem comportamentos de auto-destruição é um mero passo. Não há finais verdadeiramente felizes nestas histórias.

Uma fantasia tornada realidade?

Daí o escape, tão desejado como proibido, daqueles momentos em que satisfazemos as nossas fantasias que não são nada mais do que sermos realmente nós mesmos. Porque o conceito de fantasia existe apenas no contexto de homem armariado casado com uma mulher. Um conceito fantasioso que pode, muitas vezes a custo, é certo, converter-se em realidade.

Este é, pois, um caminho que diria desejável a quem queira e consiga fazê-lo. Ser-se preso na própria mentira uma vida inteira é, pergunto, sequer viver? “Será que duas pessoas se chegam realmente a conhecer?”, como questionou Michael a Kathleen no seu sonho. Penso que não, nunca. Mas ao menos que nos conheçamos um pouco melhor e o vivamos suficientemente próximo para não termos de andar a arranjar mentiras e omissões alimentadas por vergonhas inerentes e outras impostas. Ao menos que vivamos o melhor que consigamos com aquilo que somos capazes. E a capacidade de amar plenamente é uma das formas mais livres de se viver.

O primeiro passo de libertação é aterrador, facilmente hesitamos, ponderamos, entramos em encruzilhadas alimentadas por demónios que, se virmos bem, muitos deles serão alimentados por estigma e preconceito. A honestidade e o reconhecimento de erros, o sentimento e a responsabilidade podem ser a chave para uma transição possível. Não necessariamente fácil ou imediata, é certo. Mas, a longo prazo, acredito que possa ser libertadora para todos os intervenientes. Se for possível, e percebo que ainda hoje nem sempre o será, que seja esse o caminho.

Felizmente, houve quem possuísse uma coragem que jamais compreenderei e enfrentou, na linha da frente, todo um sistema político, social e cultural e reivindicou, para toda a gente, um espaço e uma cabeça erguida pelo orgulho de se ser LGBTI+. Sem vergonhas, sem mentiras ou meias verdades, sem omissões, sem desculpas, sem escapadelas às escondidas. Simplesmente nós, por inteiro.

Por Pedro Carreira

Ativista pelos Direitos Humanos na ILGA Portugal e na esQrever. Opinião expressa a título individual. Instagram/Twitter/TikTok/Mastodon/Bluesky: @pedrojdoc

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