Como as vítimas de Jeffrey Dahmer expuseram o racismo e a homofobia da sociedade

Como as vítimas de Jeffrey Dahmer expuseram o racismo e a homofobia da sociedade

Jeffrey Dahmer foi um dos assassinos em série mais prolíferos dos EUA tendo matado 17 pessoas entre 1978 e 1991. A sua história é agora tema da nova e polémica série da Netflix Dahmer – Monstro: A História de Jeffrey Dahmer, criada por Ryan Murphyum dos mais populares criadores queer da atualidade – e Ian Brennan. Apesar dos repetidos avisos, foi permitido o continuado assassinato destes jovens, quase todos eles não brancos e gays. Importa pois entender como as 17 vítimas de Jeffrey Dahmer também o são da sociedade e da polícia que desprezou toda uma comunidade.

Dahmer nasceu em Milwaukee, no estado do Wisconsin, em 1960, tendo-se mudado com a família para Doylestown, no Ohio, quando tinha seis anos. Ele era o filho mais velho de dois nascidos no casamento entre Lionel Dahmer, um cientista e químico, e Joyce Dahmer, uma instrutora de máquinas teleimpressoras.

A infância e adolescência de Jeffrey Dahmer terão sido marcadas pela luta da mãe contra a depressão, a ausência do pai pela sua priorização do trabalho, as mudanças frequentes de casa e mais tarde o divórcio do pai e mãe.

Apesar das dificuldades familiares, Dahmer era uma criança considerada feliz. Mas aos quatro anos de idade foi submetido a uma operação a uma hérnia, tendo ficado mais reservado a partir desse momento.

Durante a sua infância, Dahmer teve um fascínio por ossos. Impressionado com a curiosidade científica do seu filho, o pai incentivou o seu interesse ao ensinar a dissecar animais mortos na estrada e instruiu-o sobre como preservar os seus esqueletos.

Por volta dos 14 anos, Dahmer começou a beber. Foi também durante o secundário que ele percebeu que era gay. Por volta dessa altura começou a ter fantasias sexuais que envolviam parceiros sexuais não responsivos e dissecação.

Steven Hicks foi a primeira vítima de Jeffrey Dahmer

Em 1978, quando Jeffrey Dahmer tinha 18 anos deu boleia a um outro rapaz também com 18 anos chamado Steven Hicks. Levou-o para casa dos pais, onde tiveram sexo. Quando Hicks quis ir embora, Jeffrey feriu-o na cabeça duas vezes e estrangulou-o com um ferro. Depois masturbou-se perante o corpo. “Sempre soube que aquilo era errado. O primeiro assassinato não foi planeado”, disse Dahmer em 1993.

Na altura do seu assassinato, Steven Hicks tinha acabado de terminar o secundário na Coventry High School. As pessoas que o conheceram descreveram-no como bondoso e empático. No verão de 1978, Jeffrey Dahmer estava a desfrutar da vida, tendo também acabado o secundário e tinha a família fora de casa. Assim, enquanto conduzia a 18 de junho de 1978, Jeffrey reparou em Hicks que estava na berma da estrada a pedir boleia: estava a caminho de um concerto no Chippewa Lake Park, em Ohio. Percebendo que poderia manipular Hicks facilmente, Jeffrey convenceu Hicks a entrar no carro e acompanhá-lo até casa.

Uma vez em casa de Jeffrey, ele e Hicks começaram a conversar e ouvir música enquanto bebiam cerveja. Jeffrey terá percebido que Hicks era heterossexual e que a sua eventual atração não teria resposta. Quando Hicks lhe pediu que o levasse ao concerto como prometera, Jeffrey Dahmer bateu-lhe na cabeça duas vezes por trás. Hicks caiu desmaiado e foi então estrangulado até à morte, foi depois despido e o assassino masturbou-se diante do seu cadáver.

Infelizmente, o corpo de Steven Hicks nunca foi encontrado, dado que Jeffrey Dahmer desfez-se meticulosamente dos restos mortais.

Mais 16 vítimas se seguiram num período de 4 anos

Quase uma década depois de matar Steven Hicks, a 20 de novembro de 1987, Dahmer cometeu o segundo assassinato. Steven Tuomi era um rapaz de 25 anos, natural do Michigan, que Dahmer conheceu num bar e o persuadiu a ir com ele para um hotel. De acordo com o assassino, ele não tinha intenção de matar Tuomi, mas na manhã seguinte, ao acordar, Dahmer encontrou Tuomi na cama morto, com o peito esmagado e o corpo cheio de contusões. Esta morte acabou por desencadear um período de quatro anos em que matou mais 15 pessoas.

O maior choque provocado quando os crimes foram descobertos foi o que Jeffrey Dahmer fazia com os corpos das vítimas: violou alguns dos cadáveres, manteve partes do corpo em frascos e praticou canibalismo.

Tudo isto com os avisos da vizinhança à polícia.

A abordagem de Jeffrey Dahmer a jovens gays e não brancos era premeditada

Jeffrey Dahmer encontrou um método de abordagem que o permitiu durante anos levar jovens, especialmente gays e negros, com quem se cruzava em bares, paragens de autocarro, centros comerciais e livrarias para adultos. Convencia-os a voltarem para casa consigo, prometendo-lhes álcool e dinheiro em troca de fotografias e depois drogava-os.

Entre janeiro de 1988 e julho de 1991 ele assassinou mais 15 pessoas – duas das quais tinham apenas 14 anos.

Em 1989, Dahmer começou a manter partes do corpo de pessoas que assassinou, começando com a sua quinta vítima, Anthony Sears, de 24 anos e multirracial, que conheceu junto a um bar gay a 25 de março de 1989. Jeffrey manteve o crânio e os genitais preservados da vítima.

Uma das vítimas de 14 anos de Dahmer, Konerak Sinthasomphone, de origem laosiana, foi submetida a esta violência, mas conseguiu sair de casa, nua e desorientada. Sinthasomphone foi encontrado por três mulheres que chamaram a polícia. Mas quando esta chegou, os dois polícias aceitaram a história de Dahmer de que o rapaz era o seu namorado de 19 anos e que tinha bebido demais. Na realidade, Sinthasomphone tinha o crânio perfurado e injetado com ácido clorídrico, daí a sua fraqueza e confusão. As três mulheres continuavam a não acreditar na história contada, apontando aos polícias que o rapaz resistia à ideia de voltar ao apartamento de Dahmer e que Sinthasomphone apresentava ferimentos na cabeça e que sangrava pelo ânus. Um dos polícias mandou-as calar e libertou Dahmer, dado que, da sa perspetiva, ele e o rapaz estavam apenas a ter uma “discussão doméstica”. A polícia permitiu então que Dahmer regressasse para a sua casa com Sinthasomphone, onde a vítima foi por fim assassinada.

Durante todo este período, a vizinhança do prédio de Dahmer reclamou do cheiro e do som de uma motosserra à polícia, mas Jeffrey Dahmer insistiu que o cheiro era causado por carne estragada ou pela morte do seu peixe tropical.

Minorias historicamente perseguidas, invisibilizadas e menosprezadas foram o seu foco, porque as mesmas significavam um menor risco de ser descoberto pelos seus horrendos crimes. As forças policiais não levaram a sério as diversas e continuadas denunciais por parte da vizinhança de Damher e, mesmo num episódio tão extremo como o da criança Sinthasomphone, foi a palavra do assassino (branco e gay – “problemas lá deles”) que prevaleceu perante o que estava à frente de toda a gente. Ou seja, numa altura em que o chamado gay panic e o estigma contra pessoas a viver com VIH/SIDA imperavam, Jeffrey Dahmer aproveitou-se do seu próprio privilégio, bem como explorou o ambiente racista, homofóbico e ainda serofóbico na sociedade – e em especial na polícia – para concretizar e perpetuar os seus crimes em série, afastando-a do seu caminho.

Tracy Edwards conseguiu travar o assassino

Em 1991, Jeffrey Dahmer cruzou-se com três homens num bar gay e um deles, Tracy Edwards, de 32 anos – aceitou a sua oferta de 50 dólares para ir ao seu apartamento e fazer uma sessão fotográfica. Edwards encontrou uma casa repleta de sinais de violência e um cheiro nauseabundo. Sentido-se encurralado e com Jeffrey a apontar-lhe uma faca, a vítima tentou arranjar forma de escapar e não cair nos truques que o assassino lhe apresentava (como não beber da bebida feita por Dahmer e que continha, como costume, sedativos).

Quando, após ter ouvido da própria boca de Dahmer que este lhe iria “comer o coração“, Edwards atacou-o e conseguiu escapar. Os polícias que acompanharam Edwards novamente até o apartamento de Dahmer, encontraram vários crânios e outras partes de corpos humanos e fotografias onde se viam as vítimas em vários estados de desmembramento.

Jeffrey Dahmer foi imediatamente preso pela tentativa de assassinato de Edwards e, uma vez sob custódia, confessou 16 assassinatos (um deles não se lembrava). Em 1992, Dahmer foi condenado a 16 sentenças de prisão perpétua. Apesar da sentença, ele passou apenas dois anos na prisão, uma vez que, a 28 de novembro de 1994, Dahmer foi espancado com uma barra de metal por um colega de prisão. Não sobreviveu aos ferimentos.

A lição que podemos – e devemos – retirar destes eventos

A macabra história de Jeffrey Dahmer tornou-se símbolo do aproveitamento de um assassino dos preconceitos e discriminações contra minorias racializadas e sexuais. Um serial killer que usou a seu favor todas as fragilidades de uma comunidade – pobre, não branca, gay – para cometer os seus crimes à vista de toda a gente e até da polícia, tal era o grau de confiança perante a força do preconceito.

Estas são minorias que permanecem hoje em dia sem voz e sem proteção e que foram na altura submetidas a um completo desprezo policial que foi assim cúmplice da morte de 17 pessoas. E foi-o por incompetência motivada pela fria e crua desvalorização dos pedidos de ajuda e das denúncias destas pessoas.

Nem sempre é compreensível o alcance da luta, mas nesta história percebe-se facilmente que a importância da luta pela igualdade também passa por aqui. Para que não se repita.

As vítimas de Jeffrey Dahmer:

  • Steve Hicks, 18
  • Steven Tuomi, 25
  • James Doxtator, 14
  • Richard Guerrero, 22
  • Anthony Sears, 24
  • Raymond Smith, 32
  • Edward Smith, 27
  • Ernest Miller, 22
  • David Thomas, 22
  • Curtis Straughter, 17
  • Errol Lindsey, 19
  • Tony Hughes, 31
  • Konerak Sinthasomphone, 14
  • Matt Turner, 20
  • Jeremiah Weinberger, 23
  • Oliver Lacy, 24
  • Joseph Bradehoft, 25

Por Pedro Carreira

Ativista pelos Direitos Humanos na ILGA Portugal e na esQrever. Opinião expressa a título individual. Instagram/Twitter/TikTok/Mastodon: @pedrojdoc

5 comentários

    1. Pedro Carreira – Portugal – Ativista pelos Direitos Humanos na ILGA Portugal e na esQrever. Opinião expressa a título individual. Instagram/Twitter/TikTok/Mastodon: @pedrojdoc
      Pedro Carreira diz:

      Sim, toda uma situação que podia ser evitada se a polícia tivesse escutado as vizinhas 🙁

      1. Pedro Carreira – Portugal – Ativista pelos Direitos Humanos na ILGA Portugal e na esQrever. Opinião expressa a título individual. Instagram/Twitter/TikTok/Mastodon: @pedrojdoc
        Pedro Carreira diz:

        Sim, a polícia foi, ainda que não propositadamente, cúmplice de toda a perpetuação daquelas mortes. E o assassino bem se aproveitou disso. Terrível conduta 🙁

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