
Para pessoas com identidades LGBTI+, os vídeos musicais servem para promover o seu trabalho artístico e fazer experiências artísticas com som e imagem. Além disso, são objetos únicos na defesa de direitos ou para registar na história a memória daqueles que desapareceram, muitas vezes devido a situações de violência. GET THE GUNS OUT é tudo isto e muito mais. É uma obra realizada por Francisca Marvão e Francisca Sousa, em memória de Gisberta, Luna, Lara Crespo, Matias Pinto, Mia Rosa, Angelita Correia e André (aka Lisboeta Italiano). O vídeo pertence a Aurora Pinho, a música, a Odete, duas pessoas trans, artistas, ativistas e performers.
Ao ler o título “tira as armas para fora”, fui imediatamente levado para o universo da violência armada, um tópico muito presente na arte da comunidade LGBTI+ e que aparece aqui com algumas nuances. Musicalmente, não é uma canção de verso e refrão, é uma experiência mais declamada do que cantada. O seu ritmo dançante usa o som de uma pistola e também o que soa ao click de uma máquina fotográfica para marcar a batida. Sobre a melodia curta de quatro notas, esta poderá em alguns ouvintes ter um efeito hipnótico agradável, noutros tornar-se irritante passado algum tempo (ou os dois). De qualquer forma, se os corpos no ecrã delineiam gestos que são movidos pelo som da pistola, questionei-me se isso era uma representação da sua emancipação face aos efeitos devastadores da arma, ou a resignação de que estão a ser controlados por ela… O vídeo não tem uma narrativa evidente, por isso não fornece uma resposta óbvia, mas isso torna-o mais interessante para o debate.
O vídeo começa com uma contextualização do espaço escuro, vermelho e uma coabitação de dildos, sapatos de salto-alto e facas. Há nesta combinação (invulgar?) a construção de um duplo sentido, pois de um lado há a paixão, o prazer e a sexualidade exposta provavelmente com orgulho. Mas de outro, o filtro colorido denota sangue vertido, barbárie exercida nas sombras do proibido. A música começa num acumular de ruídos ondulantes, crispados, arranhados, não há melodia ou sequência harmónica evidente, só uma paisagem sonora algo introdutória. Depois da apresentação de vários corpos, cada um no seu plano de câmara, uma potencial personagem criminosa entra em cena. Caminha no quarto até perto de uma cortina que marca distintamente a diferença entre o azulado escuro da habitação, e os corpos avermelhados escondidos atrás do pano. A princípio, a invasora ergue a pistola e depois uma faca, mas rapidamente passa de atacante a membro do grupo quando atravessa a cortina. Numa espécie de ritual de passagem, ou de subversão da crueldade, o vídeo propõe uma transformação que Aurora questiona mais tarde: “are you a hero or antihero?”
Mantendo-nos na voz, é alterada com filtros e soa-me a uma gravação transmitida por uma fita. Este facto quebra a imersão e chama a nossa atenção para o vídeo enquanto objeto do artificio que, neste caso, coloca os corpos à vista de todos. Esses voyeur, que somos nós, são reconhecidos por Aurora que olha para a câmara e exclama “Do you like to watch?” É como se estivesse a reconhecer que a dança erotizada das personagens é a fonte do nosso desejo. No trabalho do sociólogo Norman K. Denzin, fala-nos de se ter instituído uma sociedade cinemática por causa de Hollywood, devido aos filmes que tornam-se locais para entrar na vida privada de outras pessoas. Um aspeto interessante, é que desenha uma distinção entre o voyeur da pornografia e o do cinema, porque diz que nos filmes é mais comum apresentar-se as personagens que observam como embaraçadas e escondidas. Só que a questão é ainda mais pertinente nos vídeos musicais, objetos historicamente marcados pela objetificação dos corpos, principalmente dos femininos. Aurora, na sua performance de dança contemporânea com poses e roupa sensuais, dispõe isso em evidência. Fica a dúvida: será que esta sua adesão ‘de braços abertos’ ao erotismo e ao enquadramento do seu corpo para o prazer visual da audiência, é um gesto provocador, subversivo ou que perpetua normas institucionalizadas?
Ao contrário da música popular, os dançarinos neste vídeo não se apresentam como uma multidão de ‘pessoas iguais’. O que acontece em muitos vídeos é termos sequências de dança em que todos se vestem de forma semelhante, às vezes até têm um mesmo tipo de corpos, para que formem uma mancha de fundo ‘sobre a qual’ as cantoras conseguem destacar-se. O que GET THE GUNS OUT faz é um pouco diferente. É verdade que Aurora continua a aparecer muitas vezes no centro do ecrã e é para aí que os nossos olhos gravitam. Mas a câmara foca várias vezes as outras dançarinas a solo, além de terem roupas, adereços, maquilhagens e tipologias de corpos diferentes: sugerem-nos um campo de diversidade. Diversidade essa que pode representar a comunidade LGBTI+ e que está também simbolizada pelo arco-íris que se vê, de forma algo contrastante, a brilhar nas salas escuras.
Dançar é, para musicólogos como Simon Frith, uma forma de “escutar intensamente” a música. O que isto quer dizer, é que ao invés de estarmos quietos nos nossos momentos subjetivos de fruição estética, deixamo-nos envolver por ela e expressamo-lo através dos nossos gestos. A dança contemporânea tem um papel determinante porque, nas suas coreografias mais aleatórias, inesperadas, inimagináveis, torna-se apta a representar a singularidade em cada um de nós. Ao invés de termos vários dançarinos, neste vídeo, a dançarem de forma equivalente, cada corpo tem a sua resposta à música, ainda que esta seja simples, repetitiva e sobejamente ruidosa. Para mim, isto também é simbólico de uma heterogeneidade, a aceitação de múltiplas formas de ser, agir, escutar e lidar com a música, mesmo que a pistola continue a marcar o pano de fundo sonoro a que cada dança corresponde.
Regressemos mais uma vez ao título da música. Aurora declama que “When I hear my name/Strike me now gonna put me down”, e isto leva-me a dois aspetos. Nomear, para a teoria feminista, é o que cria os sujeitos. Não só o nome que nos é atribuído à nascença acaba por ir absorvendo e definindo um conjunto de marcadores sociais a que chamamos ‘identidade’, como isso é fundamental para a autodeterminação de pessoas trans. Por outro lado, a associação desta componente ao “strike”, o golpe da arma, talvez sirva como mais uma estratégia de subversão. Podíamos esticar a corda e dizer que, sub-repticiamente, Aurora e Odete estão a apontar para a hostilidade que as pessoas trans sofrem porque lhes é imposta uma identidade com a qual não se identificam. Mas parece-me mais evidente que o “strike me down” seja aqui mais uma estratégia de perversão. Agora, passa a ser a de uma atração e desejo, como a seta do cupido. Há até, se me permitem, a possibilidade da arma, tal como os dildos, remeterem-nos para a construção fálica. “Get the guns fucking out/You got me from the start” é apenas o retirar da arma do coldre e disparar sobre Aurora? Ou será que Aurora, afinal, não está a falar apenas de armas, mas de outras coisas mais apetecíveis? De regresso ao problema de abertura, o tópico dos ataques face à comunidade LGBTI+ são novamente recuperados pelo apelo de Aurora: “Odete please tell them to stop”. Isto significa que, contextos artísticos à parte, a ferocidade de uns para com outros são uma realidade que necessita continuar a ser combatida. E a arte tem um papel nessa transformação social, também ela pode ser a arma que colocamos lá fora, publicamente.
O vídeo de GET THE GUNS OUT, de Aurora e Odete pode ser visto no Youtube (com restrição de idade).