Carolina Santos: Algumas mulheres migrantes chegam quebradas, outras quebram a partir do momento em que chegam

Fotografia por Alexandra Farinho.

Samotracias“, com direcção artística de Carolina Santos (Mákina de Cena), em co-criação com Letícia Blanc e Ulima Ortiz é uma peça de teatro que traz a palco testemunhos de mulheres migrantes residentes na região algarvia.

Depois do sucesso na estreia mundial em Loulé e passagem por Lagoa e Faro, “Samotracias” ruma agora ao efervescente Festival Solos Ibéricos, em Lisboa, para investigar as obscuridades entre género e migração com duas apresentações no Teatro Ibérico: a 12 e 13 de novembro.

Ao abordar questões transversais à luta pela igualdade de género e à geopolítica europeia e global, num momento em que se assiste ao triste enraizamento de guerras, à generalização da crise dos refugiados e a uma crescente feminização das migrações, quase não se pode dizer que “Samotracias” enquadra uma narrativa ficcional.

Num gesto político de aproximação e engajamento social, a peça incorpora relatos e testemunhos de mulheres migrantes residentes na região algarvia, impondo-se enquanto criação colaborativa e horizontal.

É neste contexto que surge uma reveladora conversa com a criadora Carolina Santos, abaixo reproduzida:

“Samotracias“ parte da figura da estátua da deusa grega da Vitória (Nice de Samotrácia). Que significado traz a figura fragmentada para o mundo das mulheres migrantes no Algarve?

O projecto SAMOTRACIAS tem origem em Les Samothraces, de Nicole Caligaris, que pode ser relacionado, com alguma dualidade, à Ilha de Samotrácia e à estátua lá encontrada em 1863. Esta ligação é, por isso, anterior ao espectáculo.

Mas a estátua é de um esplendor indescritível. Desde que a vi pela primeira vez, no Louvre, que se tornou numa das minhas obras de referência. E sim, quando penso que a estátua da deusa grega da vitória, força e velocidade, está exposta sem cabeça, cerca de dois milénios depois da sua criação, há uma certa poesia…
É que foi o facto de o livro ter esse nome que me fez comprá-lo, no meio de outros tantos, “perdidos” na banca de um alfarrabista em Paris.

Voltando à pergunta. Para mim, penso que o mais gritante é a questão da identidade, ou do anonimato. No caso da estátua, perdeu os seus braços e a sua cabeça. É um corpo alado, no qual se mantém um movimento, mas sem identidade.

No caso das mulheres com quem falámos, embora não haja danos visíveis, também foi necessário um reajuste identitário, tanto para decidir partir, como para fazer a viagem, ou para aceitar as condições em que lhes é permitido viver aqui.

A maior parte delas se queixa da falta de igualdade de oportunidades, da falta de visibilidade e reconhecimento de competências e qualificações académicas. Algumas chegam quebradas, outras quebram a partir do momento em que chegam.

Partir implica romper com as raízes e com o mundo que sempre conheceram. Esses processos são mais ou menos difíceis, dependendo das condições e estratos sociais a que pertencem, e das garantias que já têm em Portugal. Mas a fractura, por mais pequena que seja, fica.

A realidade das pessoas migrantes já é, só por si, bastante complexa, cheia de obstáculos e desafios — de que forma condiciona em particular as mulheres?

Um migrante está, desde logo, numa posição de fragilidade relativamente aos autóctones. Uma das primeiras barreiras é a da comunicação, seguida da legalidade (direito de estar aqui, igualdade de oportunidades) e da subsistência.
Quando pensamos na questão da comunicação – o não dominar o idioma, não se fazer entender, reduzem-se substancialmente as oportunidades reais de trabalho e, se introduzirmos a questão de género, então começam a chover os clichés.

Arranjar trabalho é difícil, ter um visto de trabalho é ainda mais difícil, fazer parte do sistema demora demasiado tempo e obriga a maior parte das mulheres uma ginástica familiar que nós nem sonhamos… como ter de gastar a maior parte das suas poupanças numa escola privada para os filhos, quando quase não ganha para comer, porque como ainda não têm visto não podem ingressar na escola pública, e não têm onde os deixar para ir trabalhar; ou não ter como se deslocar diariamente, porque sem papéis não há passes para ninguém.

As mulheres migrantes que se encontram em situações sócio-económicas mais difíceis raramente estão aqui apenas por si mesmas. Há sempre o factor familiar, de cuidadoras ou de provedoras, que as leva a aceitar condições que a maior parte de nós recusaria sem hesitar.

Do mesmo modo, nas situações extremas que o espectáculo menciona, de uma viagem muito tortuosa, as mulheres são – infelizmente – os alvos mais óbvios, não raras vezes sujeitas à agressão e manipulação psicológica e sexual de oportunistas e traficantes (violações, ou troca de sexo por favores de sobrevivência, são apenas alguns exemplos…). Talvez seja por isso que as mulheres tentam não viajar sozinhas – que é o que acaba por acontecer no espectáculo: estas três mulheres, que começam distanciadas e desconfiadas, como todos os outros, não têm outro remédio se não o de se unir, o que é feito de uma forma muito gradual e natural.

“Samotracias“ é fruto de um processo criativo colectivo e horizontal. Pode contar-nos um pouco como correu?

Penso que, de modo geral, é um processo com mais questionamentos e talvez, por isso, dê a sensação de ser mais demorado, porque são várias cabeças a pensar ao mesmo tempo e a decidir em conjunto. 

A nível de encenação, montámos a estrutura-base do espectáculo relativamente depressa, nas primeiras duas residências de criação (fizemos um total de quatro, entre março e outubro deste ano).

A primeira foi exclusivamente para a dramaturgia, adaptação e tradução do texto original para português e espanhol. Achámos que estávamos no bom caminho, para depois percebermos que iríamos estraçalhar o guião que tínhamos feito, em pelo menos mais de vinte versões, ao longo do processo…

A dificuldade da co-criação está nos detalhes, nos pequenos desacordos e nos compromissos que, por vezes, tardam a ser encontrados. Mas o resultado é colectivo, a implicação é diferente. Defendemos o nosso trabalho em várias frentes, enquanto atrizes-criadoras, encenadoras, pensadoras…

Quando nos pomos de acordo, levamos tudo à frente. E o trabalho dá saltos de gigante.

Penso que isso é visível neste espectáculo, há um motor, uma complicidade e um desejo de avançar que é transversal a todas. E, claro, que acreditamos muito no que estamos a fazer.

A apresentação em escolas da peça envolve-a também numa proposta explicitamente pedagógica e social. É esse o vosso objetivo?

Sim, sim, claro! Não pretendemos educar ninguém, ou saber mais do que os outros, mas acreditamos que a mediação – seja ela cultural, social, etc. – é, acima de tudo, uma partilha e uma desconstrução. As nossas escolas estão cada vez mais multiculturais, mas há ainda muito trabalho a fazer no que diz respeito à integração de outras nacionalidades. É mais nesse sentido que tentamos caminhar: pela integração, e não pela aculturação. E, para que o outro deixe de ser um estranho e, por isso, uma espécie de ameaça, e passe a ser mais um, com a sua identidade e toda a riqueza que uma outra cultura nos pode trazer (especialmente quando o indivíduo ainda está em formação).

Acreditamos profundamente que o co-sentimento (em alternativa a ‘compaixão’) é uma arma poderosa. Se conseguirmos, nem que seja por um momento, vestir a pele do outro, então o caminho para a igualdade, a tolerância e o respeito está bem fundado. E, nesse aspecto, a arte é um mediador incrível, já que opera em variados níveis de significação, estimulando o debate, nem que em mero solilóquio.

O tema das migrações na Europa parece por vezes esquecido na comunicação social, mas continua premente no dia-a-dia destas pessoas que continuam a lutar pela sobrevivência. A arte, neste caso através do teatro, é também uma forma destas pessoas terem voz?

Sem dúvida! Neste caso concreto, parte do processo de construção do espectáculo, sobretudo das personagens, se baseou nas entrevistas que fizemos. Para nós, foi um murro no estômago, que nos relembrou – estamos sempre a esquecer! – que somos privilegiados. Partir, para a maior parte de nós, é ir estudar ou trabalhar no estrangeiro. É uma escolha nossa. E, claro, podemos voltar quando quisermos. Falar com estas mulheres humanizou toda a criação, mudou o foco e o porquê de fazermos isto, logo a seguir a nos ter feito sentir insignificantes… Foi aí que percebemos que, sim, este espectáculo pretende dar voz a essas mulheres.

Ao individualizamos o trabalho de cada personagem, afastámo-nos do lugar generalista de “mulheres migrantes”. Demos-lhes um passado, vontades e segredos, tentámos encontrar os seus traços mais humanos, para o público se relacionar com elas e viver esta experiência de modo colectivo. Sem julgamento, mas implicados. 

Neste sentido a arte, o teatro, em particular, é uma ferramenta poderosa. Faz-nos sentir coisas sem sabermos bem porquê, quando o recebemos mais com os sentidos, sem intelectualizar demasiado.

Para nós, enquanto criadoras, tem sido muito importante falar com o público no fim de cada espectáculo, perceber o que sentiram ou ainda estão a sentir, e de que modo esta viagem os tocou.


SAMOTRACIAS com direcção artística de Carolina Santos
A partir de Les Samothraces, de Nicole Caligaris

Teatro Ibérico, Lisboa

12 de novembro, 21h00
13 de novembro, 17h00

Bilhetes disponível na Ticketline.

Agradecemos a Carolina Santos a disponibilidade.

Por Pedro Carreira

Ativista pelos Direitos Humanos na ILGA Portugal e na esQrever. Opinião expressa a título individual. Instagram/Twitter/TikTok/Mastodon/Bluesky: @pedrojdoc

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