
No passado dia 20 de novembro, dezenas juntaram-se numa vigília nas Caldas da Rainha para assinalar o Dia Internacional da Memória Trans.
A ação convocada pelo coletivo Caldas em Marcha tinha como objetivo juntar a comunidade num dia de luto e de luta, lembrando as vidas perdidas nas mãos de violência transfóbica.
Naquele final de tarde foi possível assistir à intervenção musical de Nëss e da poetisa Diana Cobra Luz. Na sala ao lado, foi organizada e esteve aberta para visita uma exposição com obras de vária pessoas artistas trans, nomeadamente Ana Batista, Inês Ribeiro, Jade Nunes, Sancha, Tomi Ezra e Venus Narciso.
A ação terminou com um minuto de silêncio pelas vidas trans perdidas neste último ano, e foi deixada a mensagem de sempre: “Continuamos em perigo e os direitos por agarrar são todos. Seguimos em força pela defesa da vida trans”.
Manifesto Caldas em Marcha para o Dia da Memória Trans
No dia 20 de novembro assinalamos mais um Dia Internacional da Memória Trans.
E um dia que marcamos em memória de todas as pessoas trans mortas pela violência transfóbica, celebrando as suas vidas, fazendo o luto da sua perda. É um dia no qual é impossivel esquecer que a luta pelas nossas vidas e direitos é vital à nossa existência, ameaçada todos os dias por um CIS-tema que nos quer condenar à precariedade, a violência, à morte e ao esquecimento. Não aceitamos e não esquecemos.
No dia 20 de novembro unimo-nos para colher os frutos da vida e da morte de todas as nossas companheiras que já não estão aqui connosco. Unimo-nos para que nos deem força para lutar por um mundo no qual nem mais uma pessoa trans em nenhum lugar seja injustiçada e violentada. Força para lutar umas pelas outras e por quem vier depois. As suas mortes não serão em vão.
O Trans Murder Monitoring update para 2022 indica que foram reportados 327 assassinatos de pessoas trans e de género diverso no último ano em todo o mundo. Sabemos que este número de assassinatos registados não representa de todo o número de vidas perdidas pela mão da violência transfóbica, uma vez que a maior parte dos assassinatos sofridos por pessoas trans não são reportados, e quando são, são descartados ou minimizados pelas forças policiais e sistemas legais.
Mesmo assim, os dados que apresentam pintam um retrato muito real da violência transfóbica, e de quem é mais alvo dela. Destas 327 pessoas assassinadas,
- 95% eram mulheres trans ou pessoas transfemininas.
- Metade das pessoas trans assassinadas cuja ocupação é sabida eram
- trabalhadoras do sexo.
- Dos casos com dados sobre etnia, 65% das pessoas assassinadas eram pessoas trans racializadas.
- 36% das pessoas trans assassinadas na europa eram migrantes.
- 35% dos assassinatos ocorreu na rua e 27% na sua residência.
- A maior parte das vítimas tinham entre os 31 e os 40 anos.
Olhando para estes números, não podemos negar nem nunca esquecer as profundas interseções entre a brutalidade transfóbica e todas as formas de violência racista, machista e xenofoba. São descriminações e violências que, estando sempre ligadas, matam acima de tudo mulheres trans, pessoas trans-femininas, trabalhadoras do sexo, migrantes e racializadas. Por compreendermos que assim é, compreendemos também que a luta a fazer pela defesa de vidas trans terá sempre e necessariamente de ser a luta transfeminista, a luta antirracista, anticapitalista e antifascista, contra todas as formas de precariedade e repressão.
Nas ruas, a inseguranca a qual estamos expostes e alarmante, sendo a nossa vivencia marcada por abuso verbal e fisico e atentados a nossa vida no espaço publico. Reconhecemos a violência acrescente que tantas vezes sofremos nas mãos das forças policiais. A polícia não nos protege, protege um status quo que deixa para morrer todos os corpos dissidentes: radicalizados, não documentados, femininos, não-binários e com diversidade funcional. Lutamos pela nossa segurança no espaço público.
Lutamos para podermos sair de e chegar a casa todos os dias sem medo, e sem que nada nos aconteça. Mas para essa luta existir, temos de ter acesso a uma casa na qual podemos ter abrigo. A vida não nos é apenas retirada em episódios de brutalidade transfóbica, é nos retirada pelas condições de vida indignas às quais a nossa comunidade é sistematicamente sujeita.
O que nos mata é um problema crítico de insegurança económica. Insegurança por sermos tantas vezes expulses de casa a uma idade precoce; Pela perda do nosso porto de abrigo; Pela perda das condições necessárias para podermos estudar; Pelo negar do nosso acesso ao trabalho e rendimento básico, à habitação e à saúde, à documentação. O que nos mata é serem-nos negadas as condições materiais necessárias para podermos viver, é a precariedade extrema à qual nos querem condenar. Celebrar o dia da Memória Trans é também rejeitar que decidam por nós a vida que vamos viver.
Por isto, lutamos contra um estado português que dia após dia ESCOLHE a manutenção das barreiras assassinas que coloca entre os nossos corpos e o acesso a bens e serviços básicos. Não há inocência. Enquanto a lógica da supremacia do lucro nos condenar à inflação, ao trabalho indigno e mal pago, às contas que sobem, à habitação completamente inacessível que nos põe no olho da rua, vidas trans estarão sempre em risco de não serem mais vida. Enquanto não tivermos acesso a um serviço de saúde descentralizado, sem filas de espera desumanas e que não nos force a binariedade; enquanto o pleno direito à habitação, autodeterminação, à educação, a rendimento básico não existir; as comunidades mais marginalizadas da sociedade continuarão a ser as mais expostas à violência diária de um estado que nos deixa para morrer.
Um estado que nega documentação a pessoas migrantes e mesmo a quem nasceu cá, impedindo o acesso a tudo o que é necessário à vida; Um estado que coloca pessoas transfemininas em prisões masculinas exponenciando ainda mais a crueldade do sistema prisional; Um estado que criminaliza as populações que marginaliza, e que mata dentro e fora dos muros dessa prisão, julgando-se impune pelos crimes que comete. Não esquecemos Danijoy, Daniel e Miguel, assassinados pelo Estado Português no Estabelecimento Prisional de Lisboa, não esquecemos Gisberta Salce Júnior, mulher trans, imigrante brasileira, trabalhadora do sexo, e portadora de VIH/SIDA, em situação de sem abrigo, assassinada por vários jovens, após recorrentes agressões, no Porto, em 2006.
Não esquecemos Alcindo Monteiro, assassinado a 10 de junho de 1995, dia de Portugal, vítima de um crime de ódio racial, por um grupo de supremacistas brancos, não esquecemos Rose, jovem trans de 15 anos, que como tantas outras tirou a sua vida, vítima de bullying na escola e violência no seio familiar. Não esquecemos Angelita Correia, mulher trans brasileira encontrada morta no mar de Matosinhos em janeiro de 2021, cuja morte foi vergonhosamente (não) investigada pela polícia judiciária portuguesa, tendo sido o caso arquivado sem qualquer resposta.
Não esquecemos quais são as estruturas que permitem e perpetuam estes crimes. Não esquecemos que a democracia e a justiça são só para alguns. O dia da memória trans existe para que não nos deixemos enganar, aqui estamos para coletivamente lembrar quais as escolhas políticas que são tomadas todos os dias e ao nosso redor. Por agora a escolha continua a ser deixar-nos morrer.
Continuaremos, todos os dias, a lutar por justiça e dignidade. Aí estará sempre o papel central da memória: como um esforço constante na construção da nossa história, pela decisão de não deixarmos as nossas companheiras cair nunca no esquecimento, para que nunca nos apaguem, neguem a nossa existência e as violências sobre ela cometidas. Lembramos para nunca esquecer porque e por quem lutamos.
Neste dia nos juntamos. Saímos às ruas porque não esquecemos as vidas tiradas a tantas pessoas trans. Queremos marcar a sua presença através da nossa presença. Da presença de todos os nossos corpos – em luto, mas vivos, resilientes, desobedientes e unidos. Continuamos em perigo e os direitos por agarrar são todos. Seguimos em força pela defesa da vida trans.